quinta-feira, 4 de agosto de 2011

A minha amiga Valéria e o ratinho...

Paula Rego, coelhinho numa estação do metropolitano que me faz lembrar a Valéria...




A Valéria é minha amiga porque fui professora das irmãs.


Foram minhas alunas, no curso secundário da noite (o recorrente...), numa turma de francês.


No ano seguinte, só uma continuou a ser minha aluna a português.

Recordo-as com ternura, sentadas nas carteiras, lado a lado, a perguntar coisas e a dar opiniões.


Recordo com saudade essas aulas passadas, o interesse delas, a delicadeza, o interesse, a sensibilidade, a inteligência.


A mais nova, a K., talvez mais “aérea” e romântica, na figura esguia e alta, com uns olhos aveludados e bons e o sonho de escrever um livro.


A M., a mais velha, é mais pequenina de tamanho, igualmente elegante, cheia de força, um sorriso nos lábios bonitos, sempre na luta, na contestação de tudo e que afirmava: “um dia eu escrevo um livro, mas só quando tiver experiência e tiver vivido.”


E tem vivido. E vive.


Acabou o curso de Relações Internacionais, entrou agora num estágio.

A K. estuda Direito com forte garra e determinação, pondo a sua poesia ao serviço das matérias áridas e difíceis, por que se apaixonou.



Manuel d'Assumpção, Dom Quixote



Talvez pelo sentimento profundo de justiça quixotesco que sempre senti nela - e pela consciência da injustiça deste mundo...


E lá vão ambas, tentando conciliar o estudo, as boas notas, com o trabalho duro, os part times acrescentados no fim de semana, para ajudar ao fim do mês.
Admiro estas mulheres!


Mas hoje quero falar da Valéria, um bocadinho de gente, que apareceu mais tarde.


Veio devagarinho, com o seu olhar de coelhinho, ou de corça, nos seus sete anos de menina inteligente, observando tudo, e caladinha
Passou a chamar-me “stora” e depois "professora", já que eu era a professora das irmãs...
O tempo correu rápido, há seis anos ou mais desde que as conheci, talvez três desde que a Valéria apareceu cá por casa.


Como todas as coisas boas, parece que foi ainda ontem...

E ficámos amigas.
De facto, quanto sentimos que éramos amigas passaram a vir a minha casa. Eu gosto de conversar com elas, de as ouvir, de aprender no que me contam o duro mestiere de viver, estudando e trabalhando e tomando conta da casa. A mãe está em Angola e lá por casa ainda há mais dois irmãos novitos.

Discutimos de tudo, dos sonhos de que não querem desistir (ir para Angola ajudar a terra delas? Onde é mais útil ficar?), das tristezas, das ilusões que não querem perder.

Eu digo-lhes o que estou a escrever, trocamos livros, mostro-lhes os desenhos que dantes fazia...


Penso que, apesar de hoje nos tratarmos por tu, elas acham que eu sou sempre a professora e sentem confiança em mim. Eu também tenho confiança nelas.

E lá vêm quando podem, um sábado ou um domingo em que as “folgas” das duas coincidam.

Da última vez trouxeram elas o lanche e fizeram o jantar, porque eu estava doente. Sempre atentas e afectivas, foi bom vê-las outra vez.

A Valéria quando chega põe-se a um cantinho a ler os livros e revistinhas que vou cá guardando para ela.


Mas antes, abraça-se a mim com força (mal me chega ao peito), e diz: "tinha muitas saudades da professora". E dá um grande suspiro.



Às vezes adormece no sofá, enquanto falamos. Agora já é amiga do ratinho, até levou para casa umas histórias dele que eu tinha imprimido para ler.


O ratinho entretanto trouxe a fruta só para ela.
Agora anda agarrado ao retrato do Sherlock Holmes, muito interessado. Já vi que tenho que voltar a reler o Conan Doyle para ele ficr contente...


No dia em que veio, dei-lhe "As Pupilas do Senhor Reitor”, do Julio Dinis.

Disse-lhe: “dou-te o livro, Valéria, mas não sei se o consegues ler. Guardas lá em casa...”



Desapareceu logo e pôs-se no seu cantinho a ler. Nem dei por ela.


Passados uns momentos foi ter connosco à cozinha.



- O que quer dizer vacilante?


De início nem eu nem as irmãs percebemos.


- O quê?!



Apontou com o dedo para o livro, com ar importante, olhando para mim:


- É aqui no livro que me deu a professora. Diz que “ela estava vacilante”...


Desatei a rir enquanto a M. procurava um significado "compreensível" para explicar a frase.



Eu só pensava: "Esta Valéria! Faz-me lembrar o ratinho..."


De facto, ela é de mais!


7 comentários:

  1. A Valéria, o ratinho, o quotidiano em part times da conversa entre amigas deixou-me maravilhada. Não conheço ninguém como a MJ. Que relato mais bonito!

    O desenho do anjo é lindo demais, merecia um post isolado e evidenciado, é lindo, lindo com movimento. MJ, tanta coisa para conhecer e partilhar.
    Agradecida! :)
    Beijinhos.

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  2. Mj,
    O desenho que apelidei de anjo, será a Vitória de Samotrácia?

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  3. Obrigada, Ana. Conhecer estas miúdas foi muito bom para mim, como percebeu...
    O meu anjo pretendia de facto ser a Vitória de Samotrácia (um pouco gordinha), copiada de uma "cópia" que o meu pai tinha comprado em Paris! DEvia estar de férias nessa altura lá na Serra e copiei-a, acho que é de 89. Hoje a Vitória é minha e gosto muito dela...
    Bom fim de semana!

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  4. Maria João,
    Acho que a Poesia, a de verdade, é esta ternura que tece as ligações entre gente que é pessoa.
    Obrigada...
    Beijinhos
    Luísa

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  5. As história de amizade que perdura são sempre emocionantes.

    Cordial abraço,
    mário

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  6. Maria João,
    A Luísa disse-me para vir ver o seu Blog, falou-me da poesia que põe naquilo que escreve e recomendou-me este seu post da Valéria e do ratinho.
    Adorei e vou passar a ser um seu leitor.
    Deixo os meus cumprimentos para si e para o Manuel.
    Raul de Amaral Amaral Marques

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  7. Obrigada, Raul, fico contente!
    Um grande abraço nosso também
    M.J

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