quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O ratinho e o liceu

Estava uma vez mais encostado ao vidro da janela, olhando para fora, quando entrei no quarto. Aquela janela era o seu ponto de observação diário .

Às vezes, mesmo ao acordar, já lá está ele, ainda com o cobertor às costas.

Ouvi um grande suspiro, e ele disse:

- Assim que acabam as aulas, S. João não tem graça nenhuma... Fica um lugar sem vida.

Franzi as sobrancelhas. Era uma conversa familiar.
Onde é que eu já ouvi isto?”, pensei.

E logo me lembrei da Florinda, quando aqui vivia. ra ela também o liceu era companhia. Eu ensinava nessa altura ali no liceu.

Ela adorava as minhas alunas, e elas vinham visitá-la, no intervalo grande. Tinha sempre croissants quentinhos para lhes dar.

E quando chegavam as férias grandes, lamentava-se, como agora o ratinho.

- Isto parece um monte do Alentejo! Abandonado... Este silêncio até me faz nervos. Esta solidão!

Era a Florinda que o ratinho me lembrava!

- Tens razão...
E fiquei um pouco triste.

Ele pensou um pouco e virou-se para mim, preocupado. Estava deitado num saquinho de xadrez. Pensava.

- Não sentes a falta das aulas? E dos teus alunos?
Foi tão súbito, que nem respondi.
Virou-se para um lado e continuou, como se pensasse em voz alta.
- Deves ter saudades. Tanta gente que conheceste ali no liceu...

Fiquei espantada por o ratinho saber tantas coisas. Comoveu-me a preocupação dele. Até me apeteceu chorar. Recompus-me e disse:

- Oh, ratinho, é claro que tenho saudades!
- Foram tantos anos a ensinar. E agora... nada!

Levantara-se e olhava-me com pena. Foi outra vez para de trás dos vidros.

- A miudagem tem muito encanto, não é? Prende. O barulho deles ali no recreio! Os saltos, os gritos, as malandrices que fazem uns aos outros!

“A miudagem!?”

- Achas?...

- E as meninas! Riem, falam e trazem cores alegres.

Deu uma gargalhadinha irónica.

- As meninas gostam muito de namorar...

Olhei, espantada:

- Como é que tu sabes, ratinho?

Mas ele parecia outra vez desconsolado. Afastou-se da janela e saltou para a escrivaninha.
- Olho lá para baixo, e só vejo gente cinzenta.


Saltitou, e andou de sítio em sítio, à procura nem sei bem de quê. Gostava destas brincadeiras.
Passou pelo espelho e mirou-se, como tanto gostava. Entrava e saía dos saquinhos que eram as camas dele...
- Aborreço-me! Ando sempre a inventar distracções...

Tinha a cítara marroquina ao colo. Como conseguia?
- Já toquei um pouco de guitarra. Faz-me falta aquela gente. São como passarinhos...

"Como passarinhos? Os malandros?"

Pensei no que "essa miudagem" às vezes fazia nas aulas! A paciência que era preciso ter. Mas veio-me logo à lembrança também a afectividade deles.

Sorri.

A alegria, a ternura, a fragilidade que por vezes escondiam, lá bem no fundo, enquanto faziam as tais malandrices. Os protestos. A revolta.

O ratinho interrompeu-me os pensamentos:

- Viver no meio dos jovens, impede as pessoas de envelhecer, não achas?

Continuava a surpreender-me o ratinho. Calei-me.

- Tenho a certeza que nunca te aborrecias, com eles... Eu nem sei o que fazer.

- Tu? A gatinha japonesa não é uma boa companhia?
- Não sabe falar a nossa língua, não tenho paciência para ela...

Voltara a saltar para o parapeito. Olhava para as árvores, para o liceu, para o recreio vazio.
- Olha o céu tão bonito! Está a chuviscar...

O céu encantava-o sempre.

- Nem um carro... Só as aulas sem ninguém.

Lembrei-me de uma amiga que me contou que espreitava do liceu para a minha casa, a ver se descobria o ratinho à janela. Não sei se conseguiu vê-lo...

Ele continuou, como se meditasse:

- Os professores ficam jovens por dentro, mesmo quando o tempo passa...

- Achas, ratinho?...

“Seria verdade?”

- Claro. Há coisa melhor do que ensinar?

Espantava-me aquela conversa, por ser tão inesperada nele.

- Isso é verdade...

- Tens muita pena, não é?

Chegou-se ao pé de mim, como se quisesse consolar-me. Deitou-me uma flor para cima, e fugiu.
Andava de manhã pela varanda, empoleirado nas buganvílias e nas malvas e trazia de lá florzinhas de todas as cores...
- Obrigada, ratinho.

Pôs-se a rir.

- Felizmente tens-me a mim! Acho que sou um bom aluno... O teu último aluno.

Deu-me que pensar. E era verdade! Era o meu último aluno o ratinho.

- Oh, ratinho...
Ele já tinha saltado para dentro da sua caminha, e ria-se de lá.

Tão convencido este ratinho!

14 comentários:

  1. Não, Falcão, ele não é seu último aluno, nós somos e muitos depois de nós. A muito o que se apreender por aqui e ainda terão muitas coisas mais.
    Já nos matriculamos e caso não queira, só podemos lamentar. Ano que vem iremos ter mais lições com você.

    5 grandes bjs

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  2. Sempre tão observador este ratinho!...

    Mas não concordo quando diz que é o último aluno.

    O Falcão tem o dão de nos prender à vida. De nos contagiar com a sua ternura. De partilhar connosco (seus leitores) as suas vivências, que são imensas.

    De nos fazer ver mundo e as suas realidades de maneira diferente. E, fazer juz ao lema "todos diferentes, todos iguais".

    Será que existe melhor aprendizagem do que esta?!

    Obrigada Falcão, por estar na minha vida.

    Sua aluna e amiga,

    Cláudia

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  3. Acho que o Ratinho anda melancólico... Temos de dar-lhe mais atenção!

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  4. Diz ao ratinho que saia de casa, que a vida está na rua...
    Um beijinho para ti, ratinha!!

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  5. Tantas futuras alunas! Já dão para uma pequena turma! Cinco do Brasil, uma do Porto...
    O problema é que o ratinho é melancólico de natureza...
    Ó, Maria, ele não quer sair de casa!
    Eu sei que a vida está na rua, aliás, está aqui e ali, mesmo em casa, basta querer "sair".
    Eu tento...mas ele não quer!

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  6. E aqui está mais uma aluna.
    Um beijinho

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  7. Concordo com o ratinho: viver no meio dos jovens impede-nos de envelhecer.
    Mas ele não é de todo o seu último aluno! :)

    beijinhos

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  8. Mais duas alunas, pelos vistos: a Isabel e a Virgínia!
    Alunas de vida...

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  9. É mesmo isso Manel, temos de combinar uma reunião com os nossos Ratinhos, pois nos tempos que por aí andam a melancolia é o seu pior inimigo .
    Bem que precisaríamos de um liceu GIGANTE para inscrever tantos Ratinhos seus alunos MJ.
    Beijo ENORME.MZ

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  10. Concordo com os comentários acima, aqui os seguidores podem ser também alunos :) e eu também quero ser aluna :)
    um beijinho
    Gábi

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  11. Olá MJ Falcão,

    Sonhar é bom, recordar também...mas olhar para a frente é importante.
    Todos somos alunos ainda, independentemente da idade, ainda temos tantas coisas para aprender.
    A escola da vida...

    Já agora onde me posso inscrever? ;)

    Um grande beijinho para si

    Blue

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  12. Manel Zé traz os ratinhos todos...
    Queridas Redonda e Blue, cá as espero para a lição...
    Diz-se que "um professor é a última coisa a morrer...", ou será a "esperança"???

    beijinhos

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