sábado, 4 de julho de 2009

A cidade e o cão

Descobri Telavive, a cidade sem repouso, com o meu cão.
Chegámos numa tarde de fins de Julho. Seguiram-se dias tórridos, abafados, em que a humidade, ao entardecer, descia sobre a cidade numa película de bruma que pesava nos ombros, ardia nos olhos e fazia respirar com dificuldade.
Vínhamos de outro continente, longa passagem por África, e fugíamos de um calor húmido e insuportável.
Eu e o meu cão, tínhamos vivido numa espécie de isolamento, fechados em casa.
Por causa do calor intenso? Por não haver mais nenhum sítio para onde ir, pequena ilha fechada por todos os lados? Pela minha incapacidade de reagir? Nem eu sabia.
Cansada, enfraquecida por sucessivas crises de paludismo, passava a maior parte do tempo num sofá a ler. Ele acompanhava-me, não podia sair fora do jardim porque lá fora havia outros cães, abandonados, perigosos, que percorriam as ruas em matilhas e uivavam nas noites de lua como velhos lobos. E preferia estar em casa ao pé de mim.
Assim, ficávamos os dois parados, à espera, dias inteiros.
Muitas vezes íamos de jeep à praia dos Tamarindos, bela, mas árida e sem sombra, com os seus coqueiros esgalgados, de copa lá no alto, e duas ou três tamarindeiras que davam o nome à praia. O imenso areal branco encandeava-nos e o sol feria os olhos e queimava o corpo, impacientava-me.
Ele não suportava que eu entrasse pelo mar dentro e ladrava angustiado até me ver sair. Depois saltava para o carro pela janela, a ladrar, a chamar-me, e ainda hoje não sei como era possível fazê-lo, tão alta a janela e tão pequeno ele, rafeirinho entre volpino e setter.
Na nova cidade, agora, olhávamos um para o outro e parecia que me sorria. De acordo os dois, sem palavras, decidimos que era a nossa cidade. Logo pela manhã saíamos do hotel, descíamos a Promenade, com o largo passeio de pedrinhas arredondadas a formar desenhos ondulados, em direcção ao Sul.
O mar, a barreira de rochas escuras que fechavam a baía e protegiam a praia, ficava do nosso lado direito. Para trás, a marina com os elegantes mastros dos barcos imóveis.
Em frente, ao fundo, a cidade branca, “Jaffa-a-bela”, encastoada no azul da baía, entre céu e mar. Parávamos a olhar a sua beleza no azul do mar e continuávamos, virando abaixo, na rehov Trumpeldor, ou, outras vezes atravessando a passagem do novo edifício, o Migdalot, inacabado, como um farol, qual Torre de Pisa em volutas inclinadas, parafuso apontando o infinito.
O importante era chegar depressa à rehov Ben Yehuda e, ali, subir e descer a rua, entrando nas lojas para apanhar o fresco dos ares condicionados e ouvir as pessoas falar uma língua nova e com sons estranhos, parando nos cafés a tomar um sumo, bebendo água fresca por aqui e por ali.
Ele virava-se e olhava-me. Sabia que pensava como eu, acenando com a cabeça: “que sim, que gostava e se sentia bem, que se divertia outra vez”... Falávamos com toda a gente, depressa tínhamos amigos, conheciam-nos na rua e era como se, depois de um longo silêncio involuntário, redescobríssemos a palavra, a convivência, o prazer do movimento, do encontro, na agitação da cidade e das gentes.
Telavive, ha-ir bli hafssakah, “a cidade sem intervalo”, sem repouso, como nos ensinaram logo. De manhã à noite, os cafés estavam abertos, cheios de gente nova, a música tocava por toda a parte, os carros giravam durante a noite. Nós sábados de manhã, havia danças de grupos de bailado, velhos e novos, no passeio junto à praia, ao som da música de um velho gira-discos.
A luz do dia era suave, brilhante, mediterrânica, e, nos cruzamentos das ruas, no seu quadriculado geométrico, chegava-nos o alívio do vento fresco do mar.
Aventurávamo-nos cada vez mais longe na cidade, agora para Norte. A descobrir as bagas redondas dos sicômoros que caíam na areia do jardim Ben Gurion, até formarem um tapete suave onde os pés se afundavam como em algodão. A ver todas as manhãs virem varrê-las e juntá-las em montes de bagas, de folhas secas e de flores caídas.
Eram duas jovens russas, loiras, pálidas, de ténis nos pés e “walkman” nos ouvidos, ausentes, silenciosas, com a música só para elas, que varriam, varriam. Depois paravam e sentavam-se, a descansar e a comer, num banco, e rir e conversar. Olhavam para nós sem nos ver e a música passava-lhes para os lábios, na doçura da língua que falavam. Encostadas à madeira dos bancos, com os fios dos auscultadores pousados nos ombros, sorriam, melancólicas, e falavam sem que ninguém as compreendesse.
O jardim ficava limpo e cheio dos riscos que as vassouras metálicas deixavam na areia. Voltávamos a sentir-se os sapatos nas pedras e a sensação de se pairar com os pés nas nuvens de algodão desaparecia. Eu e o meu cão passeávamos, melancólicos também.
Descobrimos um dia que havia árvores gigantescas na rehov Dizengoff, plantadas muitos anos antes nas dunas, entre o deserto e o mar. Árvores que tinham bagas cor de tinta negra e um cheiro adocicado que nos desagradava, quando as pessoas as pisavam na calçada.
Mais tarde, na rehov Sheikin, perto da Allenby -onde havia um lindo Museu com quadros do Rubin-, eu bebia sofregamente um sumo de romã, rimon chamavam-lhe, que saía das bagas cor de rubi faiscantes, e comia falafel, bolinhas de grão e especiarias, fritas e servidas dentro de pão ázimo, sob o olhar doce e preocupado do meu cão.
Mas um dia...
Um dia o meu cão adoeceu e eu percebi que ele me ia deixar. Uma flor negra cravara-se-lhe na boca e devorava-o pouco a pouco.
O veterinário disse:
- Tem coragem, ele vai durar pouco... Uma semana, duas?
Ele resistiu dois meses, porque queria continuar a fazer-me companhia, porque tinha pena de me deixar sozinha, porque amava tanto viver... Mas as forças iam-lhe faltando, e o entusiasmo de correr a cidade, a vontade de viver foi abrandando.
Já não vinha acordar-me de manhã para irmos passear, como dantes costumava fazer. Nessas manhãs, chegava e punha o focinhito no lençol à altura do meu rosto e ficava a respirar ao pé de mim, à espera que acordasse. Eu abria os olhos e dizia:
- Olá querido! hamud sheli, meu adorado, bom dia!
E ele abanava a cauda de raposinho e voltava a deitar-se debaixo da cama até eu me arranjar.
Agora não, agora ficava deitado no chão, o rosto pensativo sobre a almofada que lhe tinha posto debaixo da cabeça, e era eu que ia ter com ele e me deitava a seu lado e lhe dizia para o animar e me animar: “olá meu querido, kelev hamud...”
Virava os olhos para mim, sem se mexer, agitava ao de leve o rabo, triste por me ver triste.
Chorei desamparada, solucei sem consolo, abraçada a ele, no dia em que morreu.
De repente, a cidade foi-se apagando e ficou vazia, sem luz, nem cores. Fechou-se, tal como se abrira com ele.
Dorme hoje, debaixo de uma palmeira, num moshav perto de Telavive, a cidade sem repouso. A nossa cidade.


Imagens:

1 e 2- quadros de Reuven Rubin, Vista de Jaffa, a bela

3- Berthe Morisot, Mulher e cão


Tradução do hebraico:

1- "ha ir bli hafssakah" : a cidade sem repouso

2- "hamud": simpático, engraçado, querido

3- "hamud sheli" : meu querido

4- "kelev hamud": cãozinho querido

1 comentário:

  1. Coincidência, ou talvez não! O meu Cooper abandonado e que nos adoptou há quase um ano...tinha atitudes incríveis! Abandonado que foi tinha uma amor possessivo...deitava-se em cima dos meus pés...punha o focinho no braço do do dono, mesmo o braço a mexer ele não tirava...pensaria que voltaria a ser abandonado?
    No Sábado...a querer fugir de um cão que o queria morder...meteu-se debaixo da carrinha em movimento...mais uma vez procurava a protecção de quem o protegeu! Uma simples pancada...parecia dormir...deixou-nos, levou um pouco de nós...deixou muito do amor que nos tinha! É o pretinho do meu perfil...vou deixá-lo ficar!

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