segunda-feira, 13 de julho de 2009

histórias policiais: "Os Olhos de Jade", de Maria João Falcão


Mary Cassatt, chá para duas


CAPÍTULO 1

Numa tarde de fim de Outono, quatro mulheres conversam, numa casa perdida na província inglesa, entre Arundel e Brighton.
-Alguma de vocês já pensou em matar?
Fora Joan, a mais nova, quem falara. Trinta anos, alta e elegante, cabelos escuros cortados à altura dos ombros, camisola de gola alta beige, saia preta que lhe descia até meio da perna e botas altas.
Estava sentada num banco de couro, baixo, ao lado do sofá forrado de linho inglês, com flores em tons de cinzento e amarelo dourado, onde as outras duas, mais velhas, a fitavam sem compreender. A quarta, quase da sua idade, aninhavava-se num maple, cruzando as pernas bem feitas, e olhava em volta com ar irónico, não parecendo levar a sério o que ela dissera. Pousado na pequena mesa redonda em frente, um tabuleiro de madeira clara com o bule de chá de prata, quatro chávenas de porcelana com flores vermelhas e um prato de scones. O lume crepitava na ampla lareira de mármore.
Helen, no seu canto do sofá, exclamou.
-Matar? Eu?! Quem?!
E continuou:
-Bem. Acho que já pensámos: “Oh! aquela peste não merece viver! Era capaz de a matar
Riu, constrangida:
-Olha, o Rudolph... Quantas vezes já me apeteceu matá-lo! Agarrado àquela estúpida da Sally! Porque ela é nova...
-Deixa-o, já tem o que merece... –disse Joan.
E, a sorrir:
-Sabemos que não eras capaz de lhe tocar num cabelo. Dos poucos que tem...
Depois, séria:
-Não, tia Helen, não brincava, falei a sério.
Helen tentou interrompê-la, mas Joan insistiu, abanando a cabeça:
-Eu dizia matar mesmo!...
Hesitou e olhou-as devagar.
-A-ssa-ssí-nio!, soletrou. Planear a morte de alguém e realizá-lo. Nos últimos dias tenho-me interrogado se seria capaz... E cheguei à conclusão que sim.
As outras entreolharam-se, pouco à vontade.
-Pensas que eras capaz de matar? Tinhas que ter uma razão muito forte, acho e...
Helen hesitava, observando-a com atenção:
-Conhecendo-te, como te conheço... Talvez para defenderes alguém...
Tinham-se reunido, naquela tarde cinzenta, depois de longa separação. Joan tinha vivido a infância em África. Quando o pai os deixara, teria uns doze anos, viera para Inglaterra com a mãe e o irmão, Michael, mais novo do que ela. Depois, estudara Antropologia em Brighton e, terminado o curso, fora para os USA. Dali, voltara a África, onde trabalhava. Regressara à casa no Sussex, dias antes, quando soube da morte da mãe, ocorrida repentinamente e em circunstâncias que considerava estranhas.
Helen e Emily eram irmãs, velhas amigas de Abigail, mãe de Joan. Alice, a terceira amiga, conhecera Abigail na Universidade, onde fora sua aluna. Tinham vindo fazer-lhe companhia.
-Se eu era capaz de matar? Para defender alguém que corresse perigo?! Num momento de raiva? Deixa-me pensar... Não sei, sinceramente não sei...
Era Alice quem falava, agora, sacudindo os cabelos louros, lisos e muito curtos que lhe davam um ar de rapaz. Pequena e magra, tinha olhos cor de avelã, curiosos e inteligentes. Abanou várias vezes a cabeça, como se estivesse a medir o que dizia, agitou a mão e a cinza do cigarro espalhou-se pela saia cinzenta de bom corte.
-Claro que “nós” todas só mataríamos por uma causa justa, não é assim? Somos pessoas normais, bem formadas...
E o seu olhar vivo interrogava-as, divertido.
-Talvez não fosse bem isso, Alice...
Joan levantou-se, pegou no bule e começou a servir o chá. Depois, pousou-o e ficou a olhar pela a janela, de olhar perdido, com a chávena na mão. Via a fileira de árvores de troncos esbranquiçados e a folhagem vermelha que começara a cair, e disse, melancólica:
-Anoitece tão cedo...
Virou-se e continuou, dura:
-Não, Alice, é diferente, se calhar não me expliquei bem. A minha mãe morreu, e se eu estou aqui a falar de assassínio com vocês não é por acaso...

Falava, acentuando com força a palavra assassínio, enquanto as olhava uma a uma.
-Sim, assassínio a frio! Como nos livros...
-Mas porquê, Joan? -perguntou Helen.
-Porquê? Porque penso que a morte dela não foi acidental.
Insistia, martelando as palavras, quase com raiva.
-Percebem?! Tinha de vos dizer isto, não podia guardar para mim os pensamentos horríveis que me têm girado na cabeça. Desabafei, finalmente...
Olhou-as, calmamente, e continuou:
-A morte dela foi premeditada! Mataram-na.
Helen interrompeu-a, bruscamente:
-Premeditada? Assassínio... O que significa esse palavreado todo? Estás doida, Joan?
Helen reagia, com veemência. Continuou, num protesto:
-Oh! meu Deus!
Emily, que estivera calada a ouvir, metia-se agora na conversa:
-Assassínio como nos livros, dizes tu, minha querida? Tu pensas que a tua mãe, que a Abigail foi...
Fisicamente era o contrário de Helen e ninguém as julgaria irmãs. No vestido de lã mohair verde-marinho, que fazia ressaltar a brancura da pele, todo o corpo pequeno, suave e cheio, se movia. Médica, escolhera viver sozinha e as suas preocupações resumiam-se aos doentes e ao hospital.
-Falas assim porque a tua mãe morreu de repente, não é?...
Os olhos faiscavam e o verde límpido escurecia, quase violeta. Inclinou-se para a mesa, pegou numa chávena e continuou, sem olhar para Joan, concentrando-se no que fazia:
-Foi uma morte inesperada, é certo. Estranha, sim, talvez por isso mesmo. Ficaste chocada, entendo-te perfeitamente! Mas pensares isso!
-Sim, Emily, é o que eu penso!
-A que propósito? E dizes que és capaz de matar, tu? Oh! Não, Joan!
As mãos brancas, cheias de anéis, tremiam, afastando o cabelo ruivo da cara.
-Então... seria melhor “caça ao assassino”! Oh! meu Deus! O que é que eu estou para aqui a dizer?...
Os olhos fixavam ansiosamente as outras duas, como se esperasse uma palavra de apoio. Foi Joan quem voltou a falar:
-Sim, tens razão, talvez fosse melhor dizer "caça ao assassino"... Porque eu sei que a minha mãe foi assassinada e vou procurá-lo... Só sei que a morte dela não foi natural!
-Intuição...? -continuou Emily.
-É mais do que isso, é suspeita! Ela era saudável. Tinha tanta vontade de viver!
-Mas isso não basta!, exclamou Emily. Morre-se...
Joan continuava, numa excitação crescente:
-Mas "ela" foi morta!
-Acaba com isso, Joan! Domina-te!
Helen interrompera-a, num tom irritado.
-Até me arrepia ouvir-te falar assim, Joan! Deixa-te de histerias!
-Foi possível! Aconteceu...
-Como é que podes pensar isso?!
Emily voltou a falar, com um ar preocupado:
-E o que tencionas fazer, Joan?...
-Cala-te, Emily! Pareces parva tu também! Fazer, fazer o quê?!
-Deixa-a falar, tia Helen, ela está a perceber-me... Fazer o quê? Nada, por enquanto. Espero que o Michael chegue... Já lhe falei na minha suspeita, ele acredita em mim, pensa que posso ter razão. Há-de saber o que vamos fazer... Soube sempre, desde miúdo!
-O teu irmão vem aí? Não nos tinhas dito nada...
Helen sentia um certo alívio por poder falar de outra coisa.
-Sim, no fim de semana está cá...
-Claro, é normal que venha... Depois do que aconteceu.
Calou-se, com o olhar carregado de melancolia. Teria gostado de ter filhos, mas Rudolph nunca quisera. No fim e ao cabo, os filhos de Abigail eram um bocadinho os seus filhos, pensava.
-Não o vejo há tantos anos... Com quem é que ele se parece?...
-Cresceu muito, emagreceu. Tem os cabelos da mãe, acho que se parece com ela.
- E onde vive? O que faz?... isso...
-É jornalista, faz reportagens para uma revista de automóveis. Viaja muito, às vezes também participa em corridas, semi-profissional, claro. Esteve no Brasil, andou pela América do Sul. Agora fixou-se em Amesterdão.
Sorria, ao lembrar-se do irmão. Quase esquecera a fúria com que antes falara.
-Tem a mania que é um duro. Mas não é, eu conheço-o bem... É, apenas, um solitário e defende-se.
-Como é que pode ser um duro? , disse Helen.
Continuava a sorrir. Joan apontou para a mesa:
-Está arrefecer o chá...
Helen era a mais velha amiga de Abigail. Tinham-se conhecido no liceu, tinham sido como irmãs. Emily era mais nova, nunca tivera a mesma relação de amizade e de cumplicidade.
-“Não se comparava!” -pensou.
Nem agora podia sentir o mesmo que ela. Ficou a olhar para a boquilha de âmbar que lhe tremia nos dedos morenos. Era uma mulher alta, usava os cabelos, negros e lisos, penteados para trás e os olhos eram escuros. Voltavam-lhe à memória tantas recordações. Sorriu e continuou, falando devagar:
-Tínhamos dezassete anos eu e a tua mãe, éramos inseparáveis. Até o David chegar, claro. Depois... Bem, depois ele chegou, levou-a e nunca mais nos vimos. Voltámos a encontrar-nos muitos anos mais tarde, a Abigail já estava sozinha e eu tinha casado com o Rudolph.
E, como se recordasse:
-A amizade tinha continuado como se nunca nos tivéssemos separado. Acho que isto só acontece com raras pessoas. Sintonia? Quando nos vimos, recomeçámos a conversa...
Apagara o cigarro. Pousou a boquilha e pegou na chávena. Mexia, maquinalmente, o chá sem tirar os olhos do movimento da colher.
Capítulo 2

-Tens razão, Joan, deixámos arrefecer o chá...
-Deixa-te disso, Helen! És uma sentimentalona! E não estejas a mudar de assunto! A Joan pediu-nos ajuda...
Alice levantara-se e protestava, impaciente, quase agressiva. Foi à janela, limpou com a mão os vidros embaciados pela humidade. Depois virou-se para elas:
-Pensam que sou rica e fútil... E insensível. Não é?
Continuou, dirigindo-se a Joan:
-Estive a ouvir-te com toda a atenção, Joan. Acho que fizeste bem em falar connosco do que pensaste - e que é terrível! E, nós, não podemos fazer como a avestruz.
-O que queres dizer com isso da avestruz? Também tu?!
Helen parecia contrariada. No fundo desejara que a conversa acabasse. Mas Alice prosseguiu, sem lhe dar atenção:
-Não podemos fingir que não percebemos e mudar de assunto! Era demasiado fácil...
Hesitou um pouco:
-A verdade é que o ambiente que se “vivia” aqui nos dias que precederam a morte da tua mãe era bastante estranho. Até aquele jantar não foi nada normal...Vocês não se lembram? Foi poucos dias antes de ela morrer...
Emily e Helen entreolharam-se mas ficaram caladas.
-Não se lembram?! Ela não estava natural. Não era a Abigail do costume, calma e controlada. Estava agitadíssima. Insinuou coisas que não entendi, nem percebi por que razão as dizia. Parecia uma ameaça velada...
-Uma ameaça? A quem?...
Joan olhava-a com atenção.
-Não sei! Havia muita gente que entrava e saía. Estávamos sempre a encontrar-nos a toda a hora, não era habitual... E, de repente, soubemos da morte dela. Assim... inesperada...
-Era o paludismo... Ao jantar, já não se sentia bem...
Emily falara, absorta.
-Paludismo? Quem disse isso? A mãe vivia com o paludismo dela há anos! Morrer de paludismo?! Que estupidez! Bastava tratar-se. Foi envenenada, pura e simplesmente! Envenenada, percebem?!
Joan levantara a voz, estridente, mas Emily respondeu-lhe, pausadamente, acentuando bem as sílabas:
-Tem calma, Joan. “Quem disse?”, perguntas tu, -foi o médico dela, o Dr. Smith! A tua mãe tinha muitas crises. Costumava falar de “sezões”... Tremores, febre alta...
Emily agarrava-se àquelas frases, palavra dita atrás de palavra, como se desse modo pudesse alterar o que Joan dissera.
-... são sintomas de paludismo, sou médica...
E acrescentou, mais baixo, hesitante:
-Mas reconheço que podem ser de outra coisa...
-Vês, Emily, até tu concordas! Alguém se aproveitou da doença da mãe para encobrir o crime... O Zurigo também não acredita!
-O Zurigo? -perguntou Helen.
-Sim. O nosso guarda, que veio connosco de África e sempre viveu aqui. Quando cheguei, abraçou-se a mim e só me disse: “A senhora tinha medo e eu deixei-a morrer sozinha.”
-Medo? O que quer ele dizer com isso?...
Helen olhava-a, espantada. Joan continuou, sem lhe responder:
-Quando lhe falo na morte da minha mãe, afasta o olhar e não diz nada. Por que é que me disse que “ela tinha medo”? E que a “deixou morrer”? Penso e torno a pensar e não percebo.
Alice, que a escutara atentamente, abanava a cabeça.
-Também não percebo...
-Tenho a certeza de que ele sabe coisas! Sente-se culpado por não ter feito nada para impedir que a mãe morresse. E não é só isso... Há também a carta!
-Qual carta? -perguntou Helen, com o mesmo ar de espanto.
-A mãe escreveu-me uma carta, antes de morrer.
-E o que é que dizia de especial?
Helen falava, agora, em sobressalto, quase a medo.
-Falava duns papéis do meu pai. Espera, vou ler, tenho-a aqui no bolso.
E tirou um papel dobrado várias vezes.
-Está toda amachucada, tenho-a trazido sempre comigo, é a última coisa que tenho dela. Aqui já no fim escreve:
“...Ando preocupada. Se ao menos estivesses ao pé de mim! Encontrei uns papéis do teu pai, antigos. Pensei muito e seria bom falarmos de tudo isto. Há coisas que preciso de vos contar, a ti e ao teu irmão, antes que seja tarde...”
-Tinha “coisas” para nos contar, percebem?!
-Isso não quer dizer que fosse assassinada! Talvez tivesse medo de estar doente e sentisse urgência em falar com vocês...
Helen procurava desdramatizar o conteúdo da carta, que, no entanto, a impressionara.
-Antes que seja tarde... Esperava quaquer coisa, não acham?...
-Sim, mas não a morte! - murmurou Emily.
-Esperem!
E leu:
Às vezes tenho medo. Uma conversa que tive há dias, não importa com quem, trouxe-me de volta lembranças terríveis. Tremi como se alguém pudesse vir do passado e destruir-me...”
- Tinha medo e não me disse nada...", disse baixo Helen, como para si mesma.
-“Vir do passado e destruir-me”! Percebem? E isto?...
E continuou, lendo devagar, acentuando algumas palavras com mais
intensidade:
“Nos olhos de jade brilhavam todas as luzes do mundo...Enfim, tu não podes saber... Felizmente o Natal aproxima-se e tenho esperanças de nos encontrarmos nessa altura. Virás? É muito importante!...”
-O resto não interessa... Mas esta parte revela que tinha medo de alguém, temia uma coisa “terrível”. Queria falar connosco! “É importante”, diz ela...
E Joan dobrou a carta. As outras ficaram pasmadas a olhar para ela.

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