O meu cão era um rapozinho abandonado, rafeiro lindo, de pêlo vermelho, olhar inteligente e doce, com as orelhas macias, caídas quando estava a descansar, ou arrebitadas quando alguma coisa lhe despertava o interesse. Uma vez vi-o ao pé de uma raposa verdadeira e havia um ar de parecença entre os dois. Na fotografia, vejo agora como olha para ela, curioso, e, ao mesmo tempo, sem espanto, como se fosse um encontro natural.
De facto, nada o espantava, o que não quer dizer que aceitasse tudo. Pelo contrário: uma vez, em S. Tomé apareceu-lhe em frente da casa um grupo de cabrinhas selvagens que desciam da rua que levava à Trindade e à Roça do Monte Café. Nessa altura, ainda morávamos perto da Rua Morta e do Água Grande, o rio que atravessa a cidade e, ali perto, debaixo das pontes, ia ter ao mar.
De facto, nada o espantava, o que não quer dizer que aceitasse tudo. Pelo contrário: uma vez, em S. Tomé apareceu-lhe em frente da casa um grupo de cabrinhas selvagens que desciam da rua que levava à Trindade e à Roça do Monte Café. Nessa altura, ainda morávamos perto da Rua Morta e do Água Grande, o rio que atravessa a cidade e, ali perto, debaixo das pontes, ia ter ao mar.
Elas rodearam-no, cheiraram-no, e baliram, contentes. Talvez reconhecessem o cheiro ancestral do cão de guarda, do protector dos rebanhos, ou talvez achassem o seu ar doce um pouco familiar e o aceitassem no grupo. Ele, porém, não apreciou aquelas confusões. Ladrou, ladrou, olhando para mim, indignado, como se me dissesse que não gostava
de tais intimidades... O meu filho encontrara-o, de noite, à porta de um café, no bairro da Giustiniana, em Roma. O café ia fechar e ele esperava que alguém reparasse nele e o quisesse. Trouxe-o para casa, julgava que era um cão pastor (talvez, daí, a confusão das cabrinhas, que o “reconheceram” como tal!).
Pequenino, com o pelo eriçado, tal porco-espinho despenteado, só se viam brilhar os olhos, cor de avelã, interrogativos e confiantes, como sempre foram para mim.
-“Deixa-me ficar..., diziam os seus olhos. Gosto de ti, gosto de vocês, gosto da vossa casa, está quentinha...”, pareciam dizer...
Foi um longo amor, logo à primeira vista.
de tais intimidades... O meu filho encontrara-o, de noite, à porta de um café, no bairro da Giustiniana, em Roma. O café ia fechar e ele esperava que alguém reparasse nele e o quisesse. Trouxe-o para casa, julgava que era um cão pastor (talvez, daí, a confusão das cabrinhas, que o “reconheceram” como tal!).
Pequenino, com o pelo eriçado, tal porco-espinho despenteado, só se viam brilhar os olhos, cor de avelã, interrogativos e confiantes, como sempre foram para mim.
-“Deixa-me ficar..., diziam os seus olhos. Gosto de ti, gosto de vocês, gosto da vossa casa, está quentinha...”, pareciam dizer...
Foi um longo amor, logo à primeira vista.
Ficou. Para sempre, seguindo-nos por toda a parte por onde andámos, viu terras, continentes, com o mesmo ar tranquilo, sem espanto, aceitando, compreendendo. Ficava horas deitado ao meu lado no sofá onde eu lia, em África, esperava-me, à torreira do sol, quando o não levava porque tinha medo que figisse e se perdesse. Éramos bons companheiros.
Uma vez, em S. Tomé, lembro uma história engraçada. Tinham deixado a porta da cerca do jardim aberta, ele não resistia, fugia à procura de uma emoção nova, acho eu. Ouviam-se cães ladrar na rua ao lado e ele correu para lá e foi ver.
Uma vez, em S. Tomé, lembro uma história engraçada. Tinham deixado a porta da cerca do jardim aberta, ele não resistia, fugia à procura de uma emoção nova, acho eu. Ouviam-se cães ladrar na rua ao lado e ele correu para lá e foi ver.
Era uma matilha de cães vadios, pobres cães abandonados e com fome, que girava pela cidade ao anoitecer, iam e vinham, ladrando agressivos, e uivando nas noites de lua.
O meu cão não tinha medo de nada e sabia, também, que, ao menor perigo, eu estava lá para o proteger. Provocou-os do fundo da rua, ladrando, até que eles vieram, aproximando-se devagar. Eram muitos, não lhes metia medo aquele cão pequeno, elegante, com seu ar de setter traçado de perdigueiro e de raposa, ainda por cima sozinho.
A tarde caía, na calma dos dias de Gravana que era a estação mais fresca em que eu podia estar no quintal, a ler até mais tarde, porque, nessa altura, os mosquitos não atacavam como na estação das chuvas. E mosquitos, ali, queria dizer paludismo e paludismo era doença má.
A Dáy, a filha da minha cozinheira, andava pelo jardim, gostava de estar por perto, a ver se eu a dava por ela. Sentava-se na erva a contar-me coisas, subia à goiabeira ou ia buscar-me os frutos da caramboleira. Às vezes, punha-se a saltitar num pé só, para me chamar a atenção. Quando eu não lhe ligava, continuando a ler, ia-se embora, amuada, espreitar quem passava na rua.
Lá atrás, na zona da cozinha, ouvia-se a voz da mãe, a Milly, a chamá-la:
- Dáy, Didaiti! Deixa dôtôra em paz e vem-m’ ajudar...!
Ela escusava-se sempre:
- Foi dôtôrra que disse para vir fazer companhia a ela...
Ela adorava o meu cão, gostava de o levar a passear, preso pela trela, ou fazia-lhe festas e trazia-o ao colo. Dessa vez, foi à porta e reapareceu de repente:
- Cão di dôtôrra vai ser comido por cães vadios! São muitos, dôtôrra, e têm fome... Vem a correr!
E eu corri, num desespero, até à esquina. Ele ladrava, firme, nuns ladridos agudos e, de vez em quando, olhava para trás, estranhando que eu não viesse. Foi por um triz, pois os cães, vendo-o desamparado, tinham-se aproximado, sem medo. Gritei, a chamá-lo, num berro enorme, que, por sorte, os assustou. Fugiram, rosnando baixo, em direcção à praia.
Ele fez ainda uns ruídos de garganta, aliviado, e fugindo para mim, roçando-se na saia como se dissesse:
- “Onde estavas? Desta vez, nunca mais vinhas...”
Peguei-lhe ao colo e levei-o para casa.
O meu cão não tinha medo de nada e sabia, também, que, ao menor perigo, eu estava lá para o proteger. Provocou-os do fundo da rua, ladrando, até que eles vieram, aproximando-se devagar. Eram muitos, não lhes metia medo aquele cão pequeno, elegante, com seu ar de setter traçado de perdigueiro e de raposa, ainda por cima sozinho.
A tarde caía, na calma dos dias de Gravana que era a estação mais fresca em que eu podia estar no quintal, a ler até mais tarde, porque, nessa altura, os mosquitos não atacavam como na estação das chuvas. E mosquitos, ali, queria dizer paludismo e paludismo era doença má.
A Dáy, a filha da minha cozinheira, andava pelo jardim, gostava de estar por perto, a ver se eu a dava por ela. Sentava-se na erva a contar-me coisas, subia à goiabeira ou ia buscar-me os frutos da caramboleira. Às vezes, punha-se a saltitar num pé só, para me chamar a atenção. Quando eu não lhe ligava, continuando a ler, ia-se embora, amuada, espreitar quem passava na rua.
Lá atrás, na zona da cozinha, ouvia-se a voz da mãe, a Milly, a chamá-la:
- Dáy, Didaiti! Deixa dôtôra em paz e vem-m’ ajudar...!
Ela escusava-se sempre:
- Foi dôtôrra que disse para vir fazer companhia a ela...
Ela adorava o meu cão, gostava de o levar a passear, preso pela trela, ou fazia-lhe festas e trazia-o ao colo. Dessa vez, foi à porta e reapareceu de repente:
- Cão di dôtôrra vai ser comido por cães vadios! São muitos, dôtôrra, e têm fome... Vem a correr!
E eu corri, num desespero, até à esquina. Ele ladrava, firme, nuns ladridos agudos e, de vez em quando, olhava para trás, estranhando que eu não viesse. Foi por um triz, pois os cães, vendo-o desamparado, tinham-se aproximado, sem medo. Gritei, a chamá-lo, num berro enorme, que, por sorte, os assustou. Fugiram, rosnando baixo, em direcção à praia.
Ele fez ainda uns ruídos de garganta, aliviado, e fugindo para mim, roçando-se na saia como se dissesse:
- “Onde estavas? Desta vez, nunca mais vinhas...”
Peguei-lhe ao colo e levei-o para casa.
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