domingo, 12 de julho de 2009

mais histórias da casa amarela: " A mulher da Espanha"



Para nós, era “a mulher da Espanha”. Vinha da zona da raia, da fronteira que corria parte da Serra de S. Mamede- zona de contrabandistas que se estendia do Porto da Espada, S. Julião a S. António das Areias.
Lembro-me que cheirava bem, a roupa lavada e corada ao sol, usava brincos de ouro nas orelhas que espreitavam por debaixo do lenço de ramagens, com as pontas atadas no alto da cabeça.
Era alegre, desembaraçada e abria diante das crianças que nós éramos uma série de tesouros: cortes de sedas rosadas, ou tom de pele, cor de pérola, azul celeste ou rosa salmão, que formavam desenhos de folhinhas em relevo -ora baças ora acetinadas; perfumes, pós de arroz em caixas redondas com um rosto de mulher que me lembrava um Pierrot, meias de seda, um nunca acabar de maravilhas que iam saindo da trouxa de pano como do chapéu de um ilusionista.
Espalhava-se o perfume pela sala, nós queríamos cheirar tudo e ela deixava, rindo do nosso deslumbramento. Eu encostava a face nas sedas, tocava-as devagarinho com os dedos e só me apetecia envolver nelas e sentir melhor a suavidade do tecido.
Esta mulher, ainda jovem, era prima da Hermínia, nossa costureira, serrana também. Ficavam a conversar as duas, falando dos conhecidos, da família e era estranho ver o contraste entre as roupas de luto de uma e a alegria das cores vivas do vestuário da outra que, no queimado das faces vermelhas e no ar cheio de saúde, trazia o esplendor e a frescura dos pinheiros, o cheiro dos eucaliptos, enfim, a natureza e a vida.
A minha mãe pegava nas sedas, com as suas mãos muito brancas, escolhia um corte de tons suaves, dois ou três perfumes, umas meias finas.
Havia coisas que brilhavam nos seus rótulos dourados: sabonetes, garrafas de licores, e de Domecq, maços de tabaco, pulseiras, bugigangas várias.
Não sei quanto tempo durava aquela visita mas, quando a mulher da Espanha fechava a trouxa enorme, com um nó nas quatro pontas, eu suspirava, triste, por ver desfazer aquele sonho que me trouxera mundos novos, perfumes, cores.
Depois de ela se ir embora, corria ao quarto dos meus pais onde a minha mãe guardara já os perfumes, e ficava maravilhada em frente do toucador com espelho quadrado, onde via a minha mãe arranjar-se: o frasco esguio de cor amarelo-limão com uma flor de pétalas carnudas nacaradas dentro, que eu sabia que se chamava nardo, e que balançava quando eu pegava no frasco. Cheirava a lilases, a glicínias, um perfume suave e quente. O outro, cor de âmbar, com um pequeno feixe de pedacinhos de madeira atados por uma fita, tinha um cheiro intenso e chamava-se “Madeiras do Oriente”.
Oriente... Este nome sugestivo acrescentava algo de magia, cheiros de terras longínquas, mulheres com vestidos de seda e véus transparentes, a pentear os longos cabelos perfumados de óleos.
E havia um frasco mais pequeno que tinha escrito “Tabu” em letras pretas sobre verde e parecia sugerir-me a folhagem escura da selva, um feiticeiro de cabelos negros e emaranhados e colares de dentes de tigre, um derviche, imaginava eu, das histórias que andava a ler, misturadas com "A Gata Borralheira" cujos desenho adorava e imitava.
Não sabia qual escolher... Abria-os, um a um, cheirava e punha uma gotinha detrás de cada orelha como a minha mãe me tinha ensinado. Depois, não resistia e punha um pouco nos braços e ia a correr brincar, agitando-os à minha frente, sentindo-me perfumada como uma rainha.

Ilustrações:

1. Zinaida Serebryakova, diante do toucador, auto-retrato

2. Mary Cassatt, mãe e filha

3. desenho feito por mim, Cinderela

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