sábado, 26 de março de 2011

Como se fosse a última vez...


Como imaginar o que sentem os japoneses?, é a pergunta de Alain Rémond, na revista "Marianne", nº 726, de Março.


Artigo cheio de interesse, de humanidade, de procura de um sentido. Vou deixá-lo falar, é inútil acrescentar seja o que for: o que ele diz é perfeito...


Sim. Como viver depois da catástrofe? Hoje ninguém sabe o que vai ser o futuro: que vida? A vida simples e normal de todos os dias: levantar, ir para o trabalho, ir às compras, ouvir música, ir ao cinema, encontrar os amigos, comer fora...”


Mas como repetir os gestos mais simples? Num país onde há dezenas de mortos - como recomeçar a viver?


Um país devastado desfigurado, lugares onde não se pode chegar, onde nem se sabe o que se passa, quem morreu, quem ficou vivo. Nem se sabe se a vida poderá um dia voltar a surgir por aqueles sítios. E a ameaça constante, que transforma cada dia num mergulho em apneia, a suster o fôlego: o que se vai passar, ali, daqui a pouco, dentro de uma hora, de duas horas? As fábricas fechadas, os cadeados à entrada, os armazéns com as prateleiras vazias, a economia derrubada, o futuro como um buraco enorme ao fundo de uma auto-estrada onde tudo explodiu.”

Que fazer?

Todos os dias as mesmas perguntas: ficar? Partir? E as pessoas passam, seguem como que absortas, mortas-vivas, desesperadas. Sem uma expressão de alarme, de queixa, sem gritos?


Lembro um poema terrível de Hanoch Levin (escritor, poeta, dramaturgo, encenador israelita, nasce em 1943 e morre em 1999) sobre a morte, a dor de quem fica, a resignação, o silêncio, a reconciliação com essa morte, a separação definitiva, que deixa para trás o morto numa enorme solidão. Abandonado.

«But when the doctors told you: “He’s dead”

-you burst out crying and then were silent,

meaning you did not rise,

did not rebel,

meaning you were reconciled,

meaning I go this way, you go that.»

("The life of the dead")

Abandonar os que amamos para nos salvar? Deixar para trás os que morreram ou apenas desapareceram, mas que nunca mais voltarão? Para poder salvar outros que amamos? Mas... ir para onde? Fazer o quê?

Nada tem sentido. E vem a pergunta crucial, que se segue aos grandes dramas, às coisas irreparáveis:


No fundo o que é que é importante na vida? O que é faz que uma vida seja uma vida? Como continuar a viver, para si e para os outros, com os outros? Sim, era nisso que eu pensaria se fosse japonês. Talvez. Nunca se sabe, afinal de contas. Foi tudo tão rápido, tão irreal, como posso saber como reagiria?”

E conclui que só pode saber o que pensa agora, no sítio onde vive, hoje, longe do Japão. Sem teatro, sem dramas, com toda a simplicidade, pergunta-se o que faria.


Teria reaprender a viver com esta ideia mesma: que tudo, de repente, pode parar. Olhar a beleza do mundo, o mar, as ilhas, o céu, as árvores na Primavera, as flores que nascem, a beleza das aldeias e das cidades, como se fosse a última vez. Aprender a viver com essa ideia.

Como se isso fosse possível...”


Porque no fundo "nós" não somos capazes disso! Não podemos, não queremos, tão habituados estamos a viver na monotonia de um quotidianno feito à nossa medida.


Lúcidamente, Rémond constata:

Vivemos cada dia como se o amanhã fosse certo, temos encontros marcados, sabemos o que vamos fazer – mesmo que o imprevisto e as surpresas nos divirtam.

Queixamo-nos da rotina e não podemos viver sem ela, a velha rotina que nos tranquiliza, que nos faz sentir em casa neste mundo onde já temos os nosso hábitos, há tanto tempo!

Mas tudo pode ruir, de repente, o mundo pode transformar-se noutro mundo, onde não reconheceremos nada”.


Basta chegar uma onda negra que tudo engole...


(...) “De repente a morte pode chegar com uma nuvem que se escapa de uma central que explode. Não estava previsto. Não se esperava. Não se imaginava.


Digam, por favor, as coisas podem voltar a ser como eram? No tempo da boa e velha rotina? Podemos esquecer tudo e recomeçar como antes?


Não há respostas. Há escolhas...


Eu quero olhar a beleza do mundo, quero viver a minha vida de homem, com os problemas de uma vida de homem, a felicidade possível de uma vida de homem, a pensar nos outros que vivem lá, do outro lado do mundo, que passaram para o outro lado da vida.

Gostaria de não os esquecer nunca. Gostava de estar ao pé deles, para não esquecer quanto todas as coisas são preciosas, para sempre.

Tudo isto, claro, não serve para nada. A não ser amarmos, desesperadamente, a vida que é a que temos; a não ser amar todos os que amamos, para sempre.”


O que poderia dizer mais, eu? É uma lição de vida, de escolhas...


Não quero esquecer o exemplo do povo japonês, e os voluntários, os chamados "liquidatores", que se sacrificam para resolver a situação quase impossível dos reactores. Jovens, menos jovens, soldados, bombeiros, todos lutando, voluntários - quantos deles já com a morte dentro?


E nós?


Seremos capazes de responder a esse desafio? Ou vamos voltar a cair no ram-ram de uma vida rotineira, cheia de "obrigações" inuúteis? De escravidões ignoradas?


Esquecidos do Japão? Vencidos à partida? Aceitando? Sem lutar pelo nosso futuro diferente?


Temos que aceitar o desafio! Exigindo!

7 comentários:

  1. Magnífico post.
    Como sempre.
    Penso que é muito difícil imaginar a dor de quem passa por algo tão devastador.

    Mais uma vez a lição de que tudo pode mudar num segundo.Sem nos limitar a vida deviamos tê-lo sempre presente.

    Um beijinho
    Isabel

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  2. Olhando para o rumar do mundo, este acontecimento, que parece tão longe, pode tocar a todos amanhã. Algo necessita ser feito, está mais que provado que o ser humano se tem andado a portar como aprendiz de feiticeiro.

    beijo :)

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  3. MJ Falcão,
    Não tenho palavras para exprimir perante o texto e as imagens.

    Todos os dias penso no Japão e no crisântemo que esmorece de tristeza!
    Um povo com uma dignidade grande é aquele que escolhe a morte consciente para salvar os outros. Esses voluntários têm o sangue dos Samurais e são os Samurais do século XXI.
    Obrigada pelo binómio beleza e horror, um horror incontornável, misto, porque a natureza assim o ditou e o homem assim o tornou.

    Beijinho.

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  4. Hoje ao acordar chorei muito, não sei porquê. Tinha o Japão no pensamento, entre outras coisas,e decidi que quando volte a escrever no blog será sobre isso. Cheguei a ti e vi que tinhas tido o mesmo pensamento.
    É absolutamente terrível, não há palavras, e continuam a descer sem conseguir tocar o fundo para poder começar a subir.
    Beijinhos

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  5. Obrigada, Isabel. Sei quanto este assunto a emociona.É um drama cuja solução vem longe.
    AC, tem razão: mas o que se está a fazer? Temos a consciência de que a terra é "maltratada" todos os dias, o homem quer sempre mais, mas tem que haver um momento de reflexão...
    Beijo às duas

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  6. É terrível haver uma realidade que nos faça chorar! -e bom, por um lado, pois mostra como nós, seres humanoss ainda nos comovemos!
    Seremos um grupo de sensibilidade mais "motivado"?
    A verdade é que a par da dignidade dos japoneses, de que a Ana fala, e o horror que é continuar a "ir ao fundo" sem saber quando vai parar o horror, há a indiferença dos poderes e a inconsciência de tantos!
    Como bem diz Rémond (personagem interessantíssima!):
    “No fundo o que é que é importante na vida? O que é faz que uma vida seja uma vida? Como continuar a viver, para si e para os outros, com os outros?"
    Como podemos esquecer a angústia deles? Um mal (quase?) irreparável!

    A minha angústia é a mesma que tu sentes, Maria, minha alma gémea!
    Um grande beijo!

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  7. O futuro nunca é certo, mas faz-se na vide como se ele o fosse. Porque senão, ficariamos inertes.
    O drama do Japão pode acontecer em muito lado. Aqui, na minha região há pelo menos 2 centrais nucleares e não é impossivel que em caso de terramoto elas arrebentem também.
    O pior de tudo, é pensar que puz ao mundo 4 filhos e que o munto está a ruir por todos os lados! Que tristeza!
    Enfim, mais vale não pensar en nada!

    ***
    Beijinhos e feliz semana****

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