Gostava muito de ouvir a minha tia contar as histórias da sua vida aventurosa com o meu tio, por terras do Alentejo...
“Vivíamos nessa altura numa aldeia que se chamava Sabóia, perto de Santa Clara, no limiar entre o Alentejo e o Algarve”, contava-me ela.
a igrejinha de Sabóia, hoje
O Alentejo escaldante, no pino do Verão... Lá voltavam à memória os versos de Régio:
" Ao vento suão queimada..."
E continuou a contar.
“Um dia, parecia-me que ele nunca mais voltava, o pôr-do-sol estava já ali em cima, e decidi ir esperá-lo à curva do caminho, lá em baixo. Depois fui andando...”
Mas a noite caiu de repente, e a curva do caminho era sempre mais adiante.
“Vivíamos nessa altura numa aldeia que se chamava Sabóia, perto de Santa Clara, no limiar entre o Alentejo e o Algarve”, contava-me ela.
"Caminhos que eram mais carreiros pedregosos, onde só os burros e os rebanhos andavam à vontade..."
Ria-se.
Ria-se.
Eu ia imaginando os caminhos de pedra soltas onde a potente moto Jawa do meu tio, que eu tanto admirava, não conseguia chegar, porque os pneus se rasgavam nas pedras cortantes.
Tinha que a deixar na aldeia, em casa de um amigo, e subir a pé até à casa do monte.
O meio de transporte comum era a carroça. E as pernas...
O meio de transporte comum era a carroça. E as pernas...
“E lá íamos a abanar, desde Odemira. Via-se o rio e era bonito. O pior era o calor!”
A caminho de Turquinos, o montinho onde iam viver. Oliveiras e sobreiros, searas amarelas, campos queimados pelo sol ardente...
Eu pensava nos versos de Régio...
“ cercada de serras, ventos, penhascos, oliveiras/ e sobreiros...”
A minha tia continuava a contar:
“Foi uma campanha difícil. O teu tio nunca se queixou. Sabes como ele é.”
Sorriu, a lembrar-se.
“Partia ao nascer do sol e voltava ao fim do dia, já o sol se tinha posto. Sempre com a mesma alegria, a contar histórias para me distrair...”
Lembrava-se da primeira viagem. O meu tio já lá estava a viver no monte há uns meses.
Ela adiara porque o filho ainda era pequeno.
Fora um amigo do meu tio que a fora esperar ao comboio e a acompanhara até Sabóia.
A carroça chocalhava, ela sentia-se abanar até à alma, dum lado para o outro, dum lado para o outro.
O olhar velava-se-lhe pela força do calor enquanto uma neblina parecia subir dos campos e fazia tremeluzir as searas amarelas.
Com o meu primo pequenino ao colo, enjoada, a suar, vermelha do sol que incidia em cima dela desde manhã, dourado e quente, ansiava.
O zumbido dos besouros, das cigarras e dos ralos era ensurdecedor e a cabeça ardia.
Parecia-lhe que ia adormecer, desfalecia, tinha medo de deixar cair o menino dos braços, e só perguntava:
- Ó Vilarigues, ainda falta muito?
O Vilarigues era o maior amigo do meu tio, e companheiro em muitas dessas duras "campanhas" alentejanas.
- Não é longe, respondia ele, a animá-la.
Não era longe, não, mas custava a chegar lá.
Quando chegaram ao destino, o cacho de bananas, que se lembrara de levar ao meu tio, tinha cozido com o calor e as bananas eram uma papa intragável.
Nunca a ouvi queixar-se desses tempos. Nem de nada.
No entanto, ela era uma menina que viera do Porto, mimada, cheia de facilidades na vida, pais com dinheiro que tudo lhe queriam dar, e que nunca adivinharam por onde andava.
Ela não queria nada.
Bastava-lhe estar ao pé daquele rapaz de olhos esverdinhados.
Daquele sorriso sempre aberto, do carácter alegre, só por momentos sombrio e sorumbático, mas que pouco duravam.
Que vivia os dias sem remorsos nem invejas, nem ambições que não fossem as de fazer bem o seu trabalho de cartógrafo, que ele amava, indo de terra em terra como um cigano.
E continuou a contar.
“Um dia, parecia-me que ele nunca mais voltava, o pôr-do-sol estava já ali em cima, e decidi ir esperá-lo à curva do caminho, lá em baixo. Depois fui andando...”
Mas a noite caiu de repente, e a curva do caminho era sempre mais adiante.
Ouviam-se os ralos, o piar dos mochos, algum pássaro de rapina que descia em voo picado com o seu grito estridente, à caça dos coelhos da charneca, ou de algum rato.
A noite do Alentejo negra e estrelada não alumiava o caminho, a escuridão envolvia tudo. Como dizia o poeta:
"Céus que lá em cima, estrelados,
Boiando em lua, ou fechados
Nos seus turbilhões de trevas,
Pareciam engolir-me
Quando, fitando-os suspenso
Daquele silêncio imenso,
Sentia o chão a fugir-me..."
Pensando naquele "silêncio imenso", perguntava-lhe:
“Tinha medo?”
Ela respondia, tranquila:
“Não, não tinha medo... Senti-me abandonada, perdida, não sabia se andar para a frente ou se voltar para trás. O caminho tinha desaparecido diante dos meus olhos...”
Sentiu o ruído dos bois acompanhados por um homem que os conduzira até à fonte, ali perto, que ela ignorava onde era.
Ouvia claramente o pau que ele trazia a arrastar pelos caminhos e o ruído que fazia como uns estalinhos com a boca para conduzir os animais.
Descansou. Foi atrás dele. Falou-lhe. Disse-lhe que estava perdida.
O homem sossegou-a:
“Assim que os animais beberem, a senhora venha atrás de mim e lá adiante vai dar com o caminho para o monte. Não há que enganar.”
Lá seguiram, noite cerrada. O homem e os bois à frente, a minha tia atrás, a ver onde punha os pés.
Adiante, como lhe dissera, havia uma bifurcação e o homem desviou para um atalho e disse que continuasse pelo carreiro em frente até ver as luzinhas da terra.
Continuou. A escuridão era total, não via um palmo à frente do nariz.
A dada altura, teve a sensação de ouvir passos pesados e rápidos atrás dela.
Estugou o passo.
"Quase corria, desejosa de chegar a casa..."
Sabia lá quem era? Falava-se muito dos malteses que andavam de monte em monte.
“Um vadio? Um maltês?”, pensou.
Viu as luzes a brilhar, a casa estava perto.
Correu e entrou em casa, bebeu água fresca de um cântaro, e sentou-se, ofegante. O coração batia.
Pouco depois o meu tio entrou.
“Calcula que era o teu tio que tinha vindo aquele tempo todo atrás de mim! Nem ele me via nem eu a ele.”
E riu-se com o seu riso cristalino do costume.
A dois passos, na negrura da noite, não se aperceberam do perto que estavam um do outro...
“Quando penso que era o teu tio!”, ria ela.
Uma maravilha de imagens e de texto!
ResponderEliminarOlá!
ResponderEliminarO engraçado ao ler este post, é o facto de conhecer as personagens. Lindos!! O tio não o reconheci, mas a tia sim, linda como ainda hoje é.
Tirei a prova com a M.
Beijos do Alentejo.
A história é deliciosa! Não conheço o local que hoje deve estar com mais acessos do que outrora.
ResponderEliminarUm sorriso! :)
Beijinho.
MJ Falcão,
ResponderEliminarNão sei se reparou que deixei um presente para si e ele é o Kreativ Blogger.
Beijinhos.
Nunca tinha visto o avô com cabelo!! ;) Bjs Catarina
ResponderEliminarComo gosto de ler as suas histórias! :)
ResponderEliminarbeijinho
Que delícia de texto. Lindo.
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