Berthe Morisot, o pintor Manet com a filha
Queridos amigos leitores, peço-lhes um pouco de paciência para conhecerem um pouco mais de mim...
Uma história que vos vou contar: concorri a um prémio FNAC mas o meu conto não fez parte dos 6 finais...
Penso que o vosso veredicto será muito mais importante para mim...
Os figos de Setembro
Costumávamos passar o mês de Setembro na quinta dos avós.
O meu pai gostava muito do campo e era contrariado que, às vezes, nos deixava passar algum tempo na praia. Raramente nos acompanhou. Geralmente íamos com os meus tios e os avós até à Praia da Rocha, mas guardo poucas recordações desses dias de praia.
Uma vez, lembro-me de estarmos em Sines e irmos à praia de São Torpes.
Ele detestava o calor, a areia, a humidade e ficava sentado longe da orla molhada, debaixo do toldo, a ler um livro.
Em Sesimbra, estivemos uns dias de outra vez, mas nessa altura era tão pequena que só as fotografias ao colo da minha mãe me contam como foi.
Na quinta da serra, o meu pai sentia-se à vontade.
Estava-se no fim do Verão, a temperatura era suave lá em cima. Fugíamos ao calor abafado da cidade onde, só à noitinha, corria um vento fresco.
A paisagem era linda. Os pinhais à volta, a encosta a descer suave, as árvores variadas, oliveiras, castanheiros já com seus tons dourados a lembrar o Outono que aí vinha.As pereiras, macieiras e cerejeiras no pomar, perto da horta.
E as figueiras cheias de figos por essa altura do ano.
Vejo-o na grande varanda, sentado num dos bancos de madeira corridos, encostado à parede da casa. Com o livro apoiado sobre a mesa de madeira rústica, gasta pelo tempo e pelas chuvas, a ler, um lápis ou uma caneta na mão.
Erguia de vez em quando os olhos para a paisagem que se estendia do lado direito.
Em baixo, a cidade branca, estendida, no seu feitio de losango. Por vezes dizia-nos: “É como um papagaio de papel, reparem...”
Certos anos, vínhamos uma semana ou duas antes, apanhando ainda uma parte de Agosto. Nessa altura, o meu pai ia todos os dias à cidade, ao laboratório, e voltava à hora do almoço.
Agosto queria dizer as noites sem lua, negras e estreladas, as noites das estrelas cadentes.
As noites em que eu experimentava a minha coragem, desejosa de risco e de aventura.
Não me permitia ceder ao medo que nos vigia a meio da ponte estreita que é a nossa vida, filosofava eu.
Atravessava a quinta, passava os tanques de águas negras que durante o dia tinham uma cor azul transparente, atravessava ao lado dos terrenos cultivados e subia até ao pinhal.
Debaixo da copa do grande pinheiro manso de onde pendia o baloiço, acenava com um lenço e gritava “oh! oh!”, que era o sinal combinado para provar que tinha conseguido chegar.
Via as minhas irmãs agitarem os braços junto da casa iluminada, lá longe.
Olhava em redor, receosa, parecia-me ouvir ramos a estalar, escutava o grito da coruja.
Sentia um coelho bravo pular entre as giestas e as urzes e o coração apertava-se na garganta, mas aguentava e não me ia logo embora, como seria a minha vontade.
Ficava um pouco mais, a gritar, a acenar.
Regressava à casa, numa correria doida, serra abaixo, tropeçando nos ramos, prendendo os pés nas raízes que me pareciam mãos de bruxas.
Respirava fundo quando chegava à zona dos tanques. O coaxar das rãs e o cricri dos ralos era uma companhia.
Arranhada, vermelha e com a respiração acelerada, chegava a casa cansada e feliz. As minhas irmãs batiam palmas.
Na varanda, ao cimo das escadas, coberta de glicínias e da folhagem vermelha da vinha virgem, o meu pai lia, sob uma lâmpada à volta da qual giravam as borboletas da noite e as grandes libélulas.
Eu sorria, ao vê-lo, aliviada.
Recordo bem a cidade nos dias em que o nevoeiro rompia logo pela manhã. Tudo esbranquiçado, do céu até aos fundos da quinta. Primeiro começavam a destapar-se os picos das torres da Sé, depois as ruínas das muralhas do castelo que pareciam boiar naquele algodão branco e fofo.
Pouco a pouco, a cidade aparecia como uma pequena jóia.
O meu pai olhava, em silêncio. Outras vezes apontava a planície encoberta e dizia-nos o que devíamos ver ali.
Não se via nada, só o nevoeiro branco e impenetrável.
De noite, porém, era certo explicar-nos a situação das luzinhas espalhadas pelos campos a perder de vista.
- Ali, estão a ver, é a estação. Para o outro lado ficam os Fortios. E lá adiante é Alpalhão.
Ia-nos indicando uma quantidade de sítios, nomes que hoje esqueci.
Mas de manhã, enquanto lia, falava pouco, de olhos pousados no livro, silencioso e atento.
Entretanto, o nevoeiro já desaparecera e o sol brilhava no céu azul.
Eu ficava calada, a ver, sentada na outra ponta da mesa. Ia bebendo o leite do pequeno-almoço e comia o meu pão com manteiga.
Espreitava-o, curiosa, via as suas mãos grandes que pegavam nas folhas com delicadeza ou sublinhavam com a caneta alguma coisa, riscavam o livro, anotando o que ia lendo.
Por vezes, absorto, dobrava o canto das folhas, ora em cima, ora em baixo, sem ter consciência do que fazia, na vontade de tudo fixar, embrenhado na leitura e esquecido de mim.
Mais tarde, era fácil saber os livros que lhe tinham passado pelas mãos. Ainda hoje vou ver, naqueles que guardei, o que o meu pai sublinhava.
Vendo-o distraído, levantava-me e descia devagar as escadas da varanda.
Saltitava pela vereda abaixo, arrancando uma folha aqui, outra ali, vendo as flores selvagens, de corolas pequeninas rentes ao chão, apanhando uma pedrinha mais redonda, parando para ver melhor o insecto que zumbia e tremia, movendo as asas à volta de uma flor.
Ia até ao tanque de cima.
As rãs saltavam para dentro da água quando me ouviam chegar. A água corria límpida da bica que tinha ao lado, num prego, o “cocho” de cortiça, como nós dizíamos.
Eu enchia as mãos e salpicava-me toda com água fresca. Sacudia a cabeça, e os cabelos sempre curtos ficavam espetados no ar.
Pelos carreirinhos estreitos por onde ia atravessavam-se à frente dos pés pequenas lagartixas, ou osgas que não me metiam medo. Saltava num dos pés para não as pisar e agachava-me a vê-las quando se imobilizavam, de olhos fixos e vazios, fingindo-se mortas, mas com o coraçãozinho a bater sob a pele fina.
Uma vez encontrei uma osga negra, uma salamandra, a aquecer-se ao sol. Assustou-me. Sei que recuei e mudei de caminho.
O meu pai falava-nos dos lacraus e das víboras negras que se escondiam nas ervas secas dos matos.
O meu pai contava-nos muitas coisas desses animaizinhos e da natureza e eu achava que ele sabia tudo.
Nessa manhã, ao voltar para casa antes do almoço, ouvi grande algazarra junto do tanque pequeno. Aproximei-me a ver o que era. Os filhos do caseiro da avó tinham apanhado um lacrau com uma tenaz e ali estava em cima de um muro de pedras soltas, cercado de fogo. Com fósforos e pauzinhos, embebidos em álcool de queimar, tinham acendido aquela fogueira.
Cheguei-me, de olhos arregalados.
Nunca vira um lacrau de perto. Parecia-me um pequeno escorpião que já vira desenhado nos livros de aventuras. Tinha medo deles, porque sabia que a picada era muito dolorosa.
Lembrava-me sempre da história do pescador de pérolas e do filho Coyoitito, e do escorpião que aparecia n’ “A pérola”, livro de que gostava muito.
As minhas irmãs, um pouco afastadas, seguiam a cena, assustadas como eu.
Os miúdos davam gritos de excitação e um deles ia aproximando o círculo de fogo do animal que ora erguia a cauda, ora a esticava procurando atacar, desesperado.
- É agora!, gritavam.
De facto, pressentindo a morte, o lacrau preferira matar-se. Levantando a cauda, arqueada sobre si próprio, cravara a ponta envenenada no corpo.
Era demasiado cruel, era injusto.
Fugi, com lágrimas nos olhos. Corri, corri até chegar a casa. Esbaforida, subi as escadas da varanda e encostei-me ao meu pai.
Chorei, com a cabeça apoiada na mesa.
O meu pai pôs-me a mão na cabeça suavemente sem dizer nada. Ele percebia tudo, sem falarmos.
Nessas manhãs, lá ia eu à aventura, com as minhas sandálias de couro, o meu vestidinho leve, com lacinhos nos ombros que a minha mãe fizera, a saltar outra vez por ali abaixo.
Desta vez decidira ir até ao tanque grande, onde tomávamos banho e onde aprendi a nadar. Onde não deveria ir sozinha, porque já ficava muito afastado da casa.
Os ruídos do campo, os ralos, as cigarras, o zumbir dos besouros e das vespas entonteciam-me. Deitava-me à beira do tanque, a apanhar sol.
Pouco bastava para que ficasse logo cheia de sardas ao pé do nariz, e nos braços. Isso irritava-me. Não gostava de ver aquelas manchinhas na pele. Mas passados uns dias de estarmos ali na Serra, tinha um belo tom de queimado, um ligeiro bronzeado que me parecia dar um ar saudável.
Passava assim as manhãs quando decidia andar sozinha.
Mas nesses dias de férias, aon fim da tarde, havia um momento mágico. O meu pai perguntava, com ar divertido:
- Querem ir aos figos?
- Siiim!, dizíamos as três em coro.
E acrescentávamos:
- E às amoras!
Era uma grande aventura para nós!
O meu pai ia à frente, com um cesto que a minha mãe lhe dera. Nós, atrás, levávamos umas bolsinhas de pano, outras vezes um cesto grande.
Descíamos pela azinhaga, que ia ter ao fundo da quinta e à estrada, à procura das amoras, arranhando os braços nas silvas emaranhadas que escondiam as bagas dos frutos.
O ar cheirava a arbustos selvagens, a madressilva e aos orégãos que enchiam, rasteiros, a vereda.
Voltávamos a subir pelo mesmo caminho e seguíamos por detrás do tanque pequeno, pelo talhão que ficava por cima.
Ali, havia muitas figueiras e óptimos figos “esteveiros”. Hoje suponho que a expressão correcta deveria ser “figos estiveiros”, os figos do Verão...
Mas sempre lhes ouvi chamar assim.
Para mim tem o ar de qualquer coisa de selvagem, talvez por me lembrar das estevas, aquelas plantas que surgiam ali por toda a parte, em liberdade, sem ninguém as plantar.
Lembro o caule tortuoso e a casca cinzenta e lisa das figueiras, e os ramos frágeis que quebrávamos com facilidade ao arrancar os frutos.
Ríamos, todas lambuzadas de amoras, com os dedos vermelhos.
Hoje não sei bem se esses figos amadureciam mais tarde, se tinham outra cor, pareciam-me roxos, se eram mais doces porque tardios. A verdade é que ficaram associados ao meu pai e a essas tardes de Setembro.
Sei que o meu pai gostava muito deles. Se oiço agora falar de “figos esteveiros” essa ressonância estranha nos ouvidos, como magia, traz-me logo a imagem do meu pai.
Vejo-o com o seu casaco de malha e os bolsos cheios de figos...
A minha mãe, ao chegarmos a casa, só dizia:
- Os bolsos...
O meu pai encolhia os ombros pondo o seu ar de falso ingénuo dos momentos em que se queria fazer perdoar por ela, e que era ao mesmo tempo a sua ironia.
Nós, besuntadas de figos e pintadas com o sumo das amoras, éramos mandadas para a cozinha:
- Vão-se já lavar!
Recordo essa liberdade de andar pelos campos cheios de restolho seco que estalava debaixo das sandálias, com as palhas soltas a picar-nos os pés quase descalços, os bichos que saltavam de dentro dos arbustos que cercavam tudo.
O cheiro dos figos maduros, as folhas aveludadas das figueiras, a cor verde ou roxa, o leite pegajoso dos figos verdes, o gosto adocicado da gotinha de mel que tinham alguns à volta dos quais giravam doidas as abelhas, tudo isso é ainda hoje o meu pai.
Eu ouvia o que o meu pai dizia, nesses dias na quinta, ao seu lado, enquanto comíamos ou, depois do almoço ou do jantar quando ele lia o jornal, bebia o café, deitando a cinza devagar num pratinho.
Punha um ar sério, apoiava a cabeça na mão, para o ouvir melhor.
O meu pai era um homem bom.
Nasceu numa casa simples com um quintal à volta. Veio para a cidade e foi viver ele, os irmãos e os meus avós na rua de Santo André.
Contemplo numa fotografia sem data o rosto do meu avô Falcão. E vejo a sua expressão de humanidade, de bondade que era a mesma do meu pai. As mesmas sobrancelhas desenhadas, um pouco erguidas como num ar de espanto, uma boca de traços finos e os olhos azuis melancólicos, diferentes dos do meu pai que eram acastanhados, olhando, surpreendido, mas a olhar direito para os olhos do fotógrafo.
Sei que morreu muito novo quando o meu pai estava em Lisboa a acabar os estudos de Medicina.
Contou-nos como foi grande o seu desgosto.
A rua de Santo André hoje não existe como era. Cheia de prédios modernos que a desfiguram, é uma rua sem perfil. Fica ao cimo do Rossio na direcção da Igreja do Bonfim.
Nesses tempos era uma rua de casinhas pobres, com poiais ou degraus às portas.
O meu pai dizia que se sentava sozinho a ver os “amiguitos”, ele dizia assim, a brincarem, antes do jantar. Os meninos da sua rua chamaram-lhe “marroquino” porque vinha do campo.
Ainda me lembro de ouvir, quando era pequena, esse modo de chamar às gentes do campo que vinham à cidade, ao mercado ou à feira, e se vestiam de outra maneira, tinham a pele crestada do sol, elas de lenço na cabeça, eles de chapéu atirado para trás, de fato preto e camisa branca.
Lembro muito bem quando vinham tirar “as sortes”, quer dizer, para ser soldados...
Depois dos resultados, corriam as ruas com os amigos que os acompanhavam, de concertina e gaita de beiços, casaco ao ombro, flor na orelha e quadras soltas ao vento, no seu arrastado “cante” alentejano.
Cantando a sua sorte.
Eu via tudo da minha janela. Sabia que os rapazes que traziam fitas vermelhas tinham sido “apurados”. Esses riam e festejavam porque era sinal de que tinham saúde, força e era, talvez, a esperança da paga como “magalas”, ou, pelo menos, a certeza de comerem.
Os outros vinham atrás, sorumbáticos, quase não riam e traziam a fita azul pendurada na lapela. Eram doentes, muitas vezes tuberculosos, débeis e, com um olhar vítreo de tristeza, seguiam os outros sem a alegria deles, sem participarem nos cantos e nas danças.
O meu pai contava-me dessas gentes que conhecera bem...
Depressa os amigos começaram desafiá-lo e ele ia, primeiro tímido e receoso, nos dias seguintes já a correr e a fazer parte do grupo, a jogar futebol. O meu pai era um grande jogador de bola.
Mais tarde, médico na vila de Alegrete, corria as aldeias e os caminhos da Serra pedregosa para levar ajuda aos que viviam em sítios isolados, bem lá no alto dos cabeços, entre quatro paredes e uma porta.
Contava das mulheres que davam à luz, sozinhas, ou com a vizinha ao lado se estavam na povoação. Mas quantas sem ninguém, só com a mão do marido assustado que lhes limpava o suor colado à testa.
Agarravam a mão do meu pai, numa súplica muda. “Tenho frio, senhor doutor!”, enquanto a testa lhes ardia em febre.
Ele apertava-lhes a mão com força. Dizia palavras na sua voz calma, dava-lhes uma pancadinha na face, com ternura, como costumava fazer às filhas.
Tinha vontade de chorar, dizia-nos. A pobreza desses lares, a juventude do casal, a falta mesmo do essencial, amarguravam-no.
Adivinhava, nos olhos cheios de curiosidade e de susto que se fitavam no doutor, o medo das dores e dessa coisa desconhecida que era um filho a nascer, medo do futuro que aí vinha sem saberem o que teriam para dar ao filho que lhes aparecera cedo de mais.
Contava que saía muitas vezes já de manhãzinha. Respirava o ar puro da serra, via o orvalho nas estevas, nas urzes e nas florinhas selvagens.
Olhava os pinheiros húmidos e brilhantes com seus pingos de cristal pendurados das agulhas e o céu sereno, indiferente e sem fim, as montanhas azuladas, o rosado da manhã, no horizonte.
Sentava-se no poial de pedra ao lado da casa, a fumar um cigarro, tirava os óculos para descansar um pouco os olhos. Pensava na jovem mulher deitada lá dentro que esquecera as dores e, de olhos brilhantes, apertava a sua criatura, encostando-lhe a face, ainda molhada das lágrimas.
O marido vinha agradecer, trazia-lhe uma malga de leite de cabra ou uma tigela de vinho quente com sopas de pão.
O meu pai aceitava, para não “fazer desfeita”, mas custava-lhe porque sabia que não tinham nada. Ao princípio, quando não queria que lhe dessem de comer, o pai do recém-nascido pedia-lhe, triste e quase ofendido:
- Ó senhor Doutor, não nos faça essa desfeita. É só o que temos, mas damos de bom gosto...
Fumavam juntos os cigarros que o meu pai oferecia, e ficavam, sem palavras, a ver o dia nascer.
Descia a serra, em grandes passadas. Cá em baixo, embrulhado na manta, esperava-o um vizinho com um burro que o viera buscar e o acompanhava de volta a Alegrete.
Olhando para trás, para a minha infância, é isto que eu vejo: sempre o meu pai...
Houve uma ligação muito forte entre mim e o meu pai. Sentia-me culpada às vezes por não ter sido o rapaz que ele esperara... De facto, quando nasci, a parteira envolveu-me numa toalha e mostrou-me ao meu pai. Ele pegou-me com as suas mãos grandes, aparentemente desastradas, e olhou-me. Penso que me senti logo segura, e que essa sensação a levei pela vida fora.
Eu tinha uns cabelos negros e lisos, uns olhos de chinesa, ainda meio fechados. O meu pai olhou para a D.Eduarda, numa interrogação muda. Julgara que eu era um rapaz. Ela respondeu-lhe, abanando docemente a cabeça:
-Não, Sr. Doutor, é mais uma menina...
Suponho que o meu pai teve pena. Depois encolheu os ombros, com ar de resignação, e foi pôr-me ao lado da minha mãe.
Fez-lhe uma festa nos cabelos suados e ela sorriu, penso eu.
Talvez por ter ouvido contar esta história, tive sempre pena de não ter sido rapaz.
Preferia as brincadeiras com arco e flechas, andar de bicicleta, trepar às árvores, brincar na terra, sujar-me toda, correr, cair e esfolar os joelhos. Sei que era muito teimosa.
O meu pai dizia-me:
- Nunca vi uma criança tão teimosa como tu...
Nesses tempos das férias na quinta, eu tinha a mania da justiça e não podia sequer ouvir falar nas pessoas que batiam nos cães, ou ouvi-los ganir, e era incapaz de matar uma formiga. Se o fizesse, mesmo sem querer, ficava cheia de remorsos.
Quando ia pelos campos fora, nos meus passeios, estava sempre atenta aos carreirinhos de formigas e afastava-me para o lado para as não pisar.
Observava os animais sem defesa que era tão fácil matar: lagartixas, osgas, até cigarras e ver como fugiam a toda a velocidade indo esconder-se nas ervas secas.
Achava os sapos muito feios mas não aceitava que se lhes atirassem pedras para os afastar do nosso caminho.
De noite, no campo, tinha medo quando os ouvia perto porque imaginava os olhos salientes, o brilho esverdeado e húmido da pele e arrepiava-me só de pensar nisso.
Gostava das borboletas e pegava-lhes com muito jeito nas asas para as ver de perto.
Um dia o meu pai explicou que aquele pó brilhante e sedoso que nos ficava nos dedos tinha muita importância para a vida delas, e eu nunca mais fui capaz de lhes pegar.
Ficava a olhá-las, sentada no chão ou numa pedra, apoiando o queixo na mão, fixando os mais simples pormenores da cor, do desenho das asas. Amarelas, brancas, acetinadas, o debrum mais escuro e arredondado à volta, uma bolinha preta a meio, ou salpicos de outros tons. Ao fundo, as patinhas pretas.
O mundo parecia-me feito de beleza e de vida. Coisas que o meu pai nos explicava, na sua voz tranquila.
Anos mais tarde, ao voltar a casa dos meus pais, o meu pai esperava-nos a pé firme, à porta da casa da Serra, fossem que horas fossem.
Devia ouvir o ruído do carro a descer a azinhaga, e o toque da buzina, para lhe dar o sinal da chegada. Avançava um pouco, nas lajes da calçada, aproximando-se.
Lá estava ele, ao fundo. Via-o assim que o carro dava a curva. Sentia o coração bater mais forte, os olhos molhados.
O olhar vivo, as sobrancelhas franzidas num ar de curiosidade. Tinha um meio sorriso nos lábios: a viagem correra bem. O cigarro, cheio de cinza na ponta, suspenso no ar.
Cuspinhava um pouco os bocadinhos de tabaco que se lhe pegavam aos lábios.
Recusava-se a fumar cigarros com filtro e o seu tabaco preferido era o mais forte. Chamava-se Unic.
Tinha já nessa altura um enfisema pulmonar, sabia que lhe podia causar a morte, mas quando lhe falavam nisso encolhia os ombros com um ar quase indiferente, ou resignado. A morte viria, de qualquer modo: e ele queria ser eterno!
- Então?, era sempre a sua primeira palavra.
Outras viriam depois do abraço que eu lhe dava, escondendo, eu e ele a emoção, sempre reservados os dois na nossa timidez.
O nosso entendimento era feito de muitos silêncios e de compreensão.
Às vezes, sentados cá fora, na quinta, a ver a paisagem que se espraiava pela serra abaixo, passava por cima da cidade e ia continuar para além mais para além. Continuava nas searas sem fim e nas colinas suaves.
Eu lembrava os dias passados nesses verões da quinta dos avós, as noites de Agosto com as estrelas cadentes, a história do lacrau, ou os passeios pela azinhaga à procura de amoras, ou a colher os figos...
Voltava a ser como noutros tempos. Era como se um halo se pousasse ao lado das nossas cabeças e “sentíamos” em uníssono, “contemplávamos” a beleza do momento.
O Alentejo que amávamos, o sol que começara a descer no horizonte e ia desaparecer numa bola de fogo ardente, no céu vermelho. Para quê falar?
Tudo ficou impresso na memória para sempre.
Nunca esquecerei as férias maravilhosas na quinta nem as idas aos figos esteveiros...
Anos passaram depois disso...
O ar sufocava. O céu, parado lá no alto, muito longe e muito azul, estava tão longe.
Juntara-se gente. Velhas vestidas de negro, com os olhos cheios de outros mortos, jovens, mulheres, homens que pareciam pensativos viam passar o funeral. Rapazes e raparigas sérios, de olhos baixos, em silêncio.
Ou era eu que imaginava? Pensava como ele ficaria contente se soubesse que tinham vindo despedir-se dele. Ele que amara tanto a juventude, que esperara tanto dela.
Levava, abraçado no peito, um raminho de flores selvagens que, de manhã, colhera junto à casa da Serra onde o meu pai nunca mais voltaria.
Na manhã fria, que surgira bela e indiferente, colhera as flores que levava: as rosas de toucar, um ramo do medronheiro, as flores humildes da azinhaga...
Pensava nos pássaros que me ensinara a conhecer, os cucos, as calhandras, os pardais, o rouxinol.
Sim. O rouxinol cujo canto me ensinara a conhecer. O rouxinol que ouvi uma noite, longe, e por isso tinha vindo vê-lo antes que morresse...
Agora, na minha frente, o cemitério. O corpo desce na terra. O sol queima.
Em frente, estende-se a planície alentejana, debaixo do sol escaldante do meio-dia. Nunca mais.
Adeus as férias, as conversas, o silêncio, os passeios pela azinhaga à procura das amoras.
O cheiro das madressilvas e dos orégãos...
As idas aos figos "esteveiros"...
Belíssima a história.
ResponderEliminarFigos "esteveiros",nunca tinha ouvido.
Aqui pela Beira chamamos "vindimos",ou figueira de duas camadas pois,há uma variedade que só dá uma camada,no S. João,são enormes e muito saborosos,como todos os figos,e a história que,com tais sentimentos,nos contou.
Cordial abraço,
mário
MJ Falcão,
ResponderEliminarAdorei a sua história deliciosamente contada. Fez-me recordar a minha infância,os livros e as histórias da Condessa de Ségur, nomeadamente: "Os Desastres de Sofia".
Recordei o meu tio médico e as suas histórias de andar de burro, de fazer partos e pequenas cirúrgias sem meios, os pagamentos semelhantes, embora, tenham sido na Beira.
Lembrei-me da Quinta da minha avó, dos bibes com folhos bordados que nos vestiam, das rãs, dos lacraus que nunca vi, dos passeios pelo pinhal e dos carvalhos centenários. Recordei as idas ao musgo para o presépio, da apanha das amoras, das quais eu sou fanática, dos míscaros que não sei apanhar,da apanha dos dióspiros e dos figos, que chamavam figos "pingo de mel", dos cães, do tanque onde aprendi a nadar, da fonte do jardim, onde ouvia a água a correr. Recordei o meu pai, de olhar pousado no horizonte e do campo de tiro aos pratos. Não pude deixar de sorrir pela similitude fraternal, tenho duas irmãs e o meu pai partilhava do mesmo desgosto do seu.
O júri não viveu a sua história porque encanta quem a lê.
Gostei muito do seu auto-retrato, ainda pinta?
Beijinhos e obrigada por esta partilha!
Vou contar um segredo, concorri na Faculdade com um conto, ganhei o primeiro prémio mas a história não se assemelha à sua que é uma jóia.
Reli o seu comentário hoje. Fez anos que o meu pai morreu, dia 17 de Agosto, e vim lembrar-me dele...
EliminarPara ver os figos, precisamos enxergá-los,
ResponderEliminarpara comê-los, precisamos antes ser capazes de alcança-los e para vivênci-alos precisamos antes de qualquer coisa estarmos inteiras.
E isso só acontece quando aprendemos a nos deixar cortar para voltar a crescer, quem sabe na próxima colheita, na próxima estação.
Essa lembrança, esse suspiro e essa dor, só com alma se descreve. Talvez o concurso esperava receber apenas contos e não verdades contadas. É lindo demais.
5 bjs
Obrigada aos amigos que vieram "salvar" a minha auto-estima (como se diz hoje...).
ResponderEliminarÉ uma história sentida, que de facto implica "deixar-se cortar" para voltar a nascer. As minhas 5 amigas têm toda a razão. E só quando não nos importamos com sofrer essa dor, é que vêm à superfície mais completas...
Fico contente por ter "despertado" outras recordações, Ana. É bom sairmos de nós e ir ver como se está lá fora e reencontrarmo-nos cá dentro mais ricos: as suas recordações fizeram eco nas minhas...
Mande-me o conto!
Pinto raramente, mais com lápis de cor agora...
Beijinhos e bom domingo!
És uma boa contadora de histórias, tudo é lento e primoroso, tens facilidade para criar ambientes, é fácil imaginar o que narras, que para as novas gerações vai sendo um mundo irreal.
ResponderEliminarQuando eu nasci o meu pai também queria um rapaz,também levava sempre o cabelo curto, etc.
Gosto muito de comprovar que somos parecidas em imensas coisas, sobretudo respeito à infancia. Depois não sei, suponho que não, mas se somos de certa forma a criança que levamos dentro,talvez sejamos duas almas gémeas, o que me faria uma ilusão enorme...
Parabéns pelo teu relato cheio de sensibilidade. Beijinhos
xx.Bravo
ResponderEliminarNão conheço os contos que concorreram com o seu.
ResponderEliminarO seu é sem dúvida belissimo.
Li-o poucos minutos após ser postado.
Pensei em não comentar; agora, após vários comentários, não resisti.
O seu conto não tem sangue, tem amor.
O seu conto não foi inventado, é verdadeiro.
O seu conto fala do maravilhoso da vida.
( este júri, foi apanhado desprevenido !)
Obrigada, Maria, creio que tens razão, parecemo-nos. Lembro a tua evocação da infância e acho que podemos ser almas gémeas virtuais...
ResponderEliminaramigo Helder,Fiquei sensibilizada. Obrigada do coração!
Abraço grande
Falcão, adorei :)
ResponderEliminarParabéns pela sua escrita.
Você não ganhou na fanc, mas ganhou no nosso coração :) e aposto que o seu é mil vezes melhor que o que ganhou. Pois este poema tem sensibilidade, saudade, a escrita está magnífica! Nota-se o carinho com que foi escrito.
Já agora Falcão, o conto que ganhou na Fnac vai ser publicado em algum lado? É que tenho curiosidade em ler.
Um abraço
"Almas gémeas virtuais"... soa frio e distante: as almas não têm fronteiras nem etiquetas, se as tivessem, seriam outra coisa...
ResponderEliminarPaula, ainda não foi escolhido nenhum conto: ficaram 6 para ser "votados" pelos internautas interessados... Vá ver: cultura@fnac.pt (acho eu...). Pode ver e votar.
ResponderEliminarMe: obrigada pelo "bravo"!
Maria, tens sempre razão tu: claro que as almas não podem ser "virtuais"! aquilo a que nós chamamos almas, claro. As nossas são "gémeas" de certeza!
O que mais aprecio de ti (entre outras coisas) é a tua simplicidade e candura.
ResponderEliminarA frase "tens sempre razão tu" vale um reino (embora não seja certa, evidentemente, mas diz muito da sua autora..)
Um beijinho, te quiero ( uso o espanhol, porque em portugués não é a mesma coisa: às vezes necessito usar o castelhano para expressar exactamente aquilo que quero)
Gostei muito do conto, ainda mais com as imagens agora, e vou fazer um link no dona-redonda para aqui.
ResponderEliminarum beijinho
Gábi
Que forma de sentir...senti o cheiro, as cores, vivenciei a nossa serra, o nossa azinhaga, os nossos bichos, o som das vossas gargalhadas na vossa quinta. Tudo foi transcrito com minúcia mas simples , transparente com os sentimentos mais puros de um ser humano que és tu... simplicidade de um pai, grande homem.
ResponderEliminarAinda senti o seu afago na minha cabeça e a festa no meu rosto.
Tua vivência recordações da minha parte...tocaste na minha alma e a lágrima caiu.
Obrigada por esta linda partilha
Maria João muito obrigada por esse conto maravilhoso sobre o seu pai. É uma história de amor de uma filha por um pai extraordinário que também eu recordo com muito carinho. Convivi com o seu pai no Hospital e depois também na casa da Serra onde o visitávamos às vezes com os meus filhos ainda pequenos ( também eles o recordam e à sua mãe). Havia sempre um quadro para ver, uma música para ouvir ( foi lá que ouvimos pela 1ª vez o FMI do José Mário Branco), um escritor para descobrir. Também nós nos fomos despedir dele nessa triste manhã de Agosto. O meu marido escreveu sobre ele um texto muito sentido que saiu no Fonte Nova, logo na semana seguinte. Hoje ao ler o seu conto parece-me que vi e ouvi outra vez o Dr. Falcão. Não ganhou o concurso mas ganhou no meu coração e na minha saudade.
ResponderEliminarIsabel Bucho