quarta-feira, 1 de julho de 2009

Histórias da casa amarela: o circo




O circo chegou, como todos os verões e eu comecei a sonhar. Era Junho e há muito que as andorinhas tinham começado os seus voos loucos, movendo-se sobre a mancha escura dos pinhais da Serra. E eu via-as, destacando-se no azul, a correrem perdidamente, a perseguirem-se, a voltarem para trás, pontos negros abrindo e fechando as longas asas. Uma vez uma andorinha fizera o ninho em cima da janela do meu quarto.
Era Junho e chegara o calor e os dias de vento soão que nos não deixavam respirar até ao fundo. As noites começavam a ser quentes, abafava-se dentro de casa e eu puxava a cama para junto da janela e de noite olhava o céu escuro, a adivinhar as constelações, enquanto ouvia o vento soão chiar.
Era a feira das cerejas. Dias antes da feira começar, eu já sabia que o Circo vinha aí. Pelas ruas da cidade ecoavam as músicas estridentes e as vozes roufenhas lançadas pelos altifalantes de velhos carros:
“ No domingo! Venham todos ao Circo das Maravilhas!...”
Do fundo do jardim público, trazidas pelo vento, chegavam as notas de outras músicas vindas do carroussel que começava a girar, à tardinha.
À minha janela eu vivia os momentos mágicos da espera, sonhando com a noite em que as portas do Circo se abririam e, passando por debaixo da orquestra que acompanhava a trompette desafinada, deslumbrada pelas luzes fortes e pelas cores berrantes, iria à procura do meu lugar.
Esperando esse momento, íamos todas as noites passear com o meu pai e as minhas irmãs ao terreiro do Rossio que os feirantes enchiam de barracas, de luzes e de brinquedos.
Parávamos na mulher da massa frita, enorme, debruçada sobre um tacho de azeite a ferver onde ia deitando, em círculos concêntricos, uma massa leitosa que logo ficava dourada. Eu ficava pasmada a olhar. Adorava massa frita...
- Boa noite! Então o Senhor Doutor veio à feira, com as meninas?
- É verdade, D. Rosa..., dizia o meu pai, sempre tímido, à procura do dinheiro nos bolsos. E continuava:
- Quanto é, minha senhora?
- É pouco, senhor doutor...
- Muito obrigado, D. Rosa! Boa noite!..
- Até amanhã, senhor Doutor!
Sim, até amanhã, pensava eu. Todas as noites vínhamos, parávamos, e seguíamos, cada uma com o seu bocadinho de massa frita salpicada de açúcar e canela, embrulhada num papel pardo cheio de gordura.
Dos dois lados do jardim, surgia a fila de barracas que escondiam o Coreto, mas eu sabia que, no domingo da feira, ele se iluminaria de luzes e de música, com a banda, de fato novo, e os instrumentos a brilhar...
Detrás da velha Cascata, era o carroussel, com os cavalinhos e as girafas. Mais adiante, as barracas de tiro, os carrinhos de choque, onde não podíamos ir sozinhas.
Num desses anos apareceu mesmo o cilindro da morte. A moto, roncando, subia cada vez mais alta dentro de um cilindro metálico. Em cima, protegidas por uma rede, as pessoas seguiam de olhar fixo o homem da moto, a querer ver de perto a morte e o risco que se calhar não tinham a coragem de ir buscar sozinhas. Atraída pelo barulho, pela multidão, pelo meu próprio medo, pela vertigem e pela ânsia de rodar também eu naquele turbilhão de ruído e faíscas, eu não tirava os olhos das rodas em movimento e tremia.
Mas era o Circo que eu amava mais que tudo. O palhaço pobre, com o nariz em bola vermelha, a boca amarga onde desenhara um coração, os olhos tristes e cansados onde poisara uma cruz pequenina, com a sua cabeleira de palha, os risos, a poesia e a ingenuidade que me faziam rir e esquecer as tristezas dele. O palhaço-de-cara-branca, com o seu chapéu em cone com uma estrela, ridículo nas suas certezas e que eu desprezava porque eu gostava do palhaço de calças aos quadrados remendadas e a tropeçar nos sapatões.
Era tanta coisa o Circo ...
Era a equilibrista gorda e pintada que entrava em cena a correr, agradecendo os aplausos dando um saltinho e depois, deitada num pano de cetim azul com estrelas prateadas erguia alto nas pernas fortes um barril vermelho que ela fazia rodar, rodar cada vez mais depressa e que de repente o parava com um movimento rápido e o fazia saltar de novo e o punha a girar perdidamente em cima dos pés pequeninos.
Era a contorsionista que transformava o corpo magro num arco, pousava os pés na cabeça e andava de mãos no chão. Eram os saltos dos acrobatas, os gritos, os aplausos, o rufar do tambor a meio do silêncio, assinalando os números de maior perigo.
Mas, era acima de tudo a menina do trapézio, aquela figurinha branca lá no alto, cheia de lantejoulas, que me fazia ficar de coração apertado.
Como um elfo, diáfana, a brilhar e a baloiçar-se de um lado para o outro, recortada na tela escura do Circo. E a minha cabeça seguia-a, de um lado para o outro, de olhos bem abertos. Entontecida por aquele movimento, e angustiada sem saber porquê, tinha uma sensação de liberdade, como se fosse eu a voar lá em cima e não ela.
Por essa altura o meu avô era o dono do Café Central, para mim o Café mais bonito da terra. Ficava no Largo dos Correios e, no Verão, tinha uma esplanada com mesinhas de ferro pintadas de branco, espalhadas por debaixo de um enorme cedro, mesmo no meio da praça. E os criados atravessavam a rua, com as bandejas cheias de laranjadas, refrescos de groselha e das mazagrans que eu adorava.
Os meus avós viviam, nessa altura, por cima do Café. Lembro-me da varanda cheia de vasos de malvas e de hortelã perfumada.
Um dia o avô disse-nos:
- Estão cá os do Circo…
Fui logo espreitar.
Na sala dos banquetes e reuniões, onde havia grandes mesas e uma infinidade de cadeiras e grandes vidraças que davam para a rua. À volta duma dessas mesas estava um grupo ruidoso que conversava e ria. Aproximei-me devagar, para não me verem, mas logo ouvi atrás de mim a voz do meu avô. E vejo os seus olhos bons, a rirem:
- É a minha neta que tem a mania do Circo. De todos os baloiços e traves faz um trapézio!
Fiquei envergonhada. Era verdade que eu me pendurava de todos os baloiços e fazia equilíbrios no parapeito da janela perante a assistência entusiasmada, de olhos arregalados, das minha duas irmãs.
Mas não era para o avô lhes contar...
Da mesa levantou-se uma jovem mulher, alta e forte, de pele muito clara e rosto redondo emoldurado de caracóis. Era sardenta e tinha uns olhos azuis risonhos e foi a rir que me disse:
- Eu sou a trapezista... É verdade que gostas do Circo? Logo à noite vais ver-nos?
Tinha chegado o domingo, o grande dia. Corei e com a cara baixa e as sobrancelhas franzidas disse que sim com a cabeça, sem a olhar.
"Claro que ia!"
- Se te vir esta noite lá, dou-te uma lembrança minha...
Fui-me esconder na salinha da avó, deitada no divã coberto por um cobertor que tinha um leão que às vezes me metia medo.
Nessa noite, lá fomos as três para a primeira fila, com o meu pai e a minha mãe. A música desafinada estava à nossa espera, mais a trompete estridente, as cambalhotas e os palhaços e tudo.
No entento, sem o dizer a ninguém, o que eu esperava era a menina do trapézio...
E ela chegou, no maillot de lantejoulas prateadas, com os caracóis loiros atados com uma fita branca e a sua capa de estrelas. Veio a correr, parou e agradeceu com elegância os aplausos, olhou à volta, e veio até à beira do estrado, ao pé de mim.
- O que te prometi...
E tirou do peito uma fotografia que eu agarrei sem olhar. Não conseguia ver nada, nem ouvia as minhas irmãs, curiosas, a quererem ver o que era. Com as mãos espalmadas, apertando a fotografia da minha nova amiga, olhei para cima.
Ela tinha subido e, no alto, recortada na tela azul, baloiçava-se a tal figurinha branca a brilhar no seu fato de estrelas, enquanto cá em baixo soavam os aplausos.
Imagens:
Seurat, O Circo
Kandinsky, O Verão

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