Edouard Manet, retrato de Berthe Morisot
A sala estava fria, apesar da lareira acesa há tantas horas. Joan sentia-se gelada, não sabia o que dizer. A imagem da mãe pairava na sala.
"Sim, ele tem razão, estamos perdidos...", pensava Joan ao lembrar a frase de Gabriel.
- Ouve, Gabriel, não quero agredir-te. Percebo que tem sido muito penoso para todos, não devemos magoar-nos...
A voz soava fraca, sentia-se tão frágil.
- Por isso é que não podemos aceitar a morte da minha mãe como se fosse uma fatalidade, e ficar parados! Não sei por onde começar, claro, mas há-de existir uma pista!
-Mas se tu tiveres razão, por que motivo a assassinaram, Joan?
-Não sei. Não notaste nada de estranho? Pessoas que vieram, cartas que chegaram?
-Como queres que me lembre? O que é importante recordar? É absurdo...
Joan passou a mão pelos olhos, abanou a cabeça e suspirou:
-Tens razão, é absurdo... Nada disto tem sentido.
Calou-se, a ouvir a música.
-É linda esta música, Gabriel. Faz impressão pensar que está morta, magoa tanto. Tu ainda tocas piano?
- Oh! há anos que não toco...
Caillebotte, jovem ao piano
Calou-se.
Joan continuou:
- E a mãe tocava? Lembro-me tão bem de a ouvir quando era pequenina. Escondia-me detrás dos cortinados de renda, ou no jardim lá fora, com os joelhos bem apertados contra o peito, parecia que me doía tudo.
Berthe Morisot, o jardim
- Ela era tão importante para mim..., continuou.
Gabriel respondeu, pensativo: Berthe Morisot, no lago
-Talvez tivesse mudado nos últimos tempos.
Olhava para a lareira.
- Tocava muito pouco. Agora é que reparo nisso. Pensativa. Tinha deixado os passeios no jardim. Pouco convidava as velhas amigas...
Borisov-Musatov, pintor impressionista russo, "Senhoras, passeando à tarde"
- Andava triste, fechava-se no quarto, escrevia. Estava sempre com papéis à volta...
-E onde estão esses papéis? A mãe mandou-me uma carta. Falava de coisas “horríveis” do passado. Tens ideia do que era?
- Do passado dela?
Gustave Caillebotte, "olhando para fora"
- Sim. E do pai. Talvez sejam uma pista.
Gabriel abanou a cabeça.
-Nunca me falou em papéis nenhuns...
- Onde estarão?, perguntou Joan.
- Não faço a menor ideia!
Joan disse, impaciente:
- Mas vamos procurá-los!
-Preciso de pensar... Há outras coisas.
Calou-se, e acrescentou, num tom mais calmo:
-E o Zurigo? Sabe mais do que julgamos. A tua mãe falava com ele. De África, dos amigos, das noites iguais aos dias, das marés. Sei lá que mais!
Hesitava.
-Na noite em que a Abigail morreu, passei a dar-lhe as boas noites. Ele estava sentado na cadeira, ao lado da cama.
Depois acrescentou, como se recordasse de repente:
-Ela não se sentia bem, tinha febre, queixara-se de dores. O Zurigo levou-lhe um chá.
-E depois?
-Quando abri a porta, ouvi-o: “Prometo, prometo...” E chamou-lhe “mãezinha”, como fazia nos momentos sérios.
-Sim, eu sei, eu sei.
Perguntou, triste:
- O que achas que seria?
-Não faço ideia...
-Não te lembras de mais nada?
-Não.
Joan insistiu:
-A Alice falou num jantar. Disse que a mãe estava muito nervosa. Quem é que veio jantar?
-Sim, houve um jantar. A tua mãe marcou-o, uns dois ou três dias antes de adoecer.
-Isso já é importante.
Gabriel continuou, devagar.
-Já tinha febre, disse-o à mesa, lembro-me. Por isso, pensámos que fosse paludismo. Nessa noite o médico deu-lhe um remédio. Mas não serviu de nada...
Pousou o copo e agitou as mãos, à sua frente, como se não as controlasse.
- Quando a vi...
-Foste tu que a encontraste? Eu não sei nada...
-Sim, fui eu.
- Gabriel, conta-me tudo! Precisas de desabafar!
Olhava para ele, ansiosa.
-Tinha os cabelos espalhados sobre o rosto, julguei que dormisse...
Gabriel suspirou:
- Estava morta...
- Deve ter sido horrível!
Acrescentou, como se pedisse desculpa da curiosidade:
- Sei que foi um choque tremendo, mas para mim é importante falar. Era a minha mãe.
~
- Eu percebo... não tens de que te desculpar.
- Gabriel, tem paciência... Sei que é doloroso, mas tens que pensar. Deve haver qualquer pista! Oh! Gabriel, Gabriel, é tão difícil.
-Sim, é muito difícil...
Ficaram calados um momento. Depois Joan levantou-se lentamente e disse:
- É melhor ir-me deitar. Vê se descansas, também. Não devia ser injusta, no fundo gostavas tanto dela como nós. Desculpa.
E, num impulso:
-Talvez ainda vamos a tempo de ser amigos...
Gabriel sorriu.
-Sim, talvez.
-Tanta coisa que aconteceu! Não julgues que sou só uma egoísta. Tenho tido os meus problemas como toda a gente. Foi bom conversar contigo...
Olhou para ele com tristeza, estendeu a mão, hesitando no gesto incompleto. Virou-se, mas, de repente, fixou os olhos no canto da lareira:
-Onde descobriste este candeeiro?
Era um candeeiro pequeno, pousado sobre a mesa baixa. A base, art nouveau, era uma figura de bronze, com um abat-jour de vidro fosco que formava uma cabeça de mulher em flor, com os olhos em jade, rasgados e oblíquos, pelos quais se filtrava uma luz difusa.
-Deve ter sido a tua mãe...
Olhou para o candeeiro, com atenção.
-Sim, foi ela. Gostava muito do jade, comprava anéis sempre que os via. Dizia que o David tinha olhos de jade. Não sei se é jade ou só vidro coalhado da mesma cor...
-Sim, o pai tinha olhos verdes. Da cor do jade. É considerado o símbolo da virtude. Sabias?
-Será...
Parecia distraído, desinteressado.
-É bonito. Mas não estava cá da última vez...
-Não posso jurar. A Abigail comprou-o numa loja de antiguidades em Londres.
Parou, tentando recordar.
-Sim. Trouxe-o uma tarde e foi pô-lo ali na mesa. Acendia-o à noite, quando se sentava no sofá.
-Por que seria?
- Não sei. Às vezes, via-a a olhar para ele.
Joan tentou pegar-lhe. Apesar de pequeno, era pesado.
- “O brilho nos olhos de jade”...
Pensava na carta da mãe.
-É estranho... A base é de bronze?
-Penso que sim.
Joan suspirou e acabou por dizer, baixinho:
-Tudo me parece esquisito hoje. No fundo, é só um candeeiro...
Pegou numa caixinha de chocolates que estava na mesma mesa e tirou um.
-Uma coisa doce, antes de dormir... Queres um, Gabriel?
-Oh! Não, Joan, nem lhes posso tocar, sou alérgico! A tua mãe é que adorava os chocolates, não resistia...
-Eu sei, sou como ela.
Sorriu.
- Boa noite...
Virou-se, para trás, já à porta:
- Podes emprestar-me o carro? Queria dar umas voltas, antes do Michael chegar. Talvez vá a Brighton para desanuviar...
- Usa-o à vontade, eu não vou precisar. Começaram as férias do Natal.
-É verdade, disse Joan, está a chegar o Natal.
- Que Natal..., murmurou Gabriel.
- Tens razão. Vê se dormes...
-Boa noite. Obrigado por teres falado. E por me teres ouvido. Talvez não seja tarde para sermos amigos...